Tuesday, June 27, 2006

Festa em Sandringham

Finnegan, mochila nas costas, estava esperando na entrada do colégio, estapeando o uniforme quase impecável para livrar-se da poeira do giz. Alguém chamou seu nome e ele, assustado, ergueu a cabeça. Foi até Bruce quando o viu se aproximar. Cumprimentou-o com embaraço.

- Alô. Onde estão suas coisas? – Bruce indagou.

- Aqui – Finnegan tirou a mochila. – São apenas dois dias.

A viagem até Sandringham, pelo fato de Bruce não ser dono de um carro, exigia uma parada em Norwich. Finnegan comprou um pacote de doces. Pela voracidade com que os engoliu, Bruce achou que açúcar fosse um artigo raro no colégio interno.

- Por que você ainda não tem um carro? – Finnegan tinha a boca tão entupida de minhocas de gelatina que Bruce mal entendeu a pergunta. – Seu carro.

- Meu... ? Ah. Carro é um gasto dispensável. Eu raramente preciso de um.

- Querem me dar um carro quando eu sair do colégio.

- Mamãe?

- Meu pai.

Finnegan ofereceu um bolinho de mel, mas Bruce recusou. Passou a viagem olhando para a janela, enquanto o irmão lia as revistas em quadrinhos que trouxera junto das roupas. Em determinado momento, Bruce petrificou-se.

- O que é isso?

Finnegan olhou para o uniforme e os próprios sapatos.

- O quê? Onde?

- Na capa da sua revista.

- Ah. Uma máquina do tempo. Mutantes viajando no tempo.

- Deus.

- Parece estúpido, mas é legal.

Bruce encostou a cabeça no banco do ônibus e fechou os olhos. Uma vez em Sandringham, Honoria recebeu Finnegan com um abraço apertado. Ela tinha os cabelos enrolados em uma touca e a maquiagem quase pronta. A mansão de Robert O’Hara, um campo vistoso em volta, era uma das construções mais novas da região. Bruce, nas raras vezes em que a visitava, nunca deixava de se surpreender.

- Bruce – Honoria o beijou com cuidado. – Que bom ter os dois aqui. Já preparei o seu quarto.

- Parece gentil, mas eu não preciso ficar mais de um dia.

- Mas é claro que precisa. Quem vai levar Finnegan de volta?

Finnegan sorriu, os lábios melados de açúcar.

- Ele não pode... voar de volta para Londres?

- Não.

- Por que crianças não aprendem a voar?

- Ter dezesseis anos faz de mim um adolescente – Finnegan corrigiu.

- Adolescência não existe.

Os convidados chegaram com o entardecer. Quando Bruce desceu, um grupo de meninas emburradas já ocupava a mesa da sala de estar. Ele foi, guiado por vozes, para o jardim. Tudo era iluminado e havia música provida de um violino. Não pôde reconhecer quase ninguém.

- Mãe. Onde está Robert?

Honoria parecia bonita e exultante, os cachos loiros balançando conforme ela voltava a cabeça. Conversava com um senhor do qual Bruce se lembrava vagamente. Ou talvez só estivesse confuso.

- Ah, justamente! Eu o vi há pouco. Estava procurando você – Honoria o segurou pelo braço. – O que está achando da festa?

- Aturável, para uma festa – ele sorriu e cumprimentou o homem. – Como vai?

O homem estendeu a mão.

- É este o seu filho mais velho? Bruce? Eu já o vi, quando era pequeno.

- Me desculpe. Eu realmente não me lembro do seu nome. É muito comum, eu apago pedaços da minha vida.

- Bruce, este é Edward – Honoria fez as honras. – Edward, Bruce é o filho do meu primeiro casamento, como já sabe.

- Também conheci seu pai.

- Todos os freqüentadores do pub The Trooper também conheceram. Ele era popular.

- Bruce gosta de usar o sarcasmo para lidar com situações difíceis.

- Obrigado, mãe.

Quando o professor sente na pele o que Moira quis dizer com "erro de cálculo"

Graças a Deus ninguém o vira chegando em casa, porque parecia que ele tinha ido nadar na parte mais suja do Tâmisa.

O que não deixava de ser verdade,mas ninguém precisava saber.

Errara o cálculo (ou melhor, a máquina errara) e aterrisou literalmente dentro do rio. Não era para ser assim. Era para ele ter chegado no mesmo ponto de partida.

Devia dar graças a Deus que chegara na mesma cidade. Pior seria se tivesse errado a longitude e ido parar em Sidney ou Tóquio - mais grave do que parar dentro do rio.

Teria que falar com Moira sobre aquele problema de programação. O que implicaria em ter que falar com ela sobre o programa e... Era melhor ele mesmo tentar resolver o problema.

Abriu a porta de casa, e Fahreinheit veio correndo em sua direção. Nada de Moira, nada de Bruce, ninguém por perto. Só então Alphonise Wilcox se permitiou cair na cadeira mais próxima, mesmo encharcado e sujo como estava, para refletir sobre sua experiência mais recente.

Estava dando certo!

Em Piccadilly

Rose, sem aviso, parou em uma revistaria. Saiu de lá armada de pelo menos meia dúzia de exemplares de moda. Bruce, que havia esperado do lado de fora, sorriu, mas Rose pareceu empertigada. Os dois passeavam em Piccadilly, o dia quente - por milagre - e a rua infestada de pessoas.

- Moira, ela parece o tipo estudioso – Rose comentou, folheando as revistas. – Tem quantos anos?

- Não sei. Vinte e cinco? Talvez.

- Nova demais.

- Foi um palpite. Eu não sei a idade dela.

Rose assentiu e abriu outra revista. Depois de olhar por muito tempo para a mesma fotografia, sorriu de modo depreciativo.

- Veja – exibiu uma modelo morena e muito magra. Tinha o rosto maquiado com cores amarelas. – Foi minha colega. O que acha?

- Ela parece um esqueleto – Bruce respondeu.

- Agora me sinto melhor.

Rose rasgou a folha, amassou-a e a atirou no primeiro lixo que viu. Os dois estabeleceram uma pausa para tomar café. Bruce pediu um suco de laranja; o balconista o olhou com misericórdia.

- Onde é que estava o Wilcox? – Rose perguntou.

- Não faço a menor idéia. E tenho certeza de que jamais saberei. Acontece, simplesmente. Num momento ele está lá, no sofá, inofensivo, e no outro pode estar sentado em cima da geladeira enquanto segura uma serra elétrica.

- Falo sério. Já considerou mudar de emprego?

Bruce riu.

- Já. Mas então me lembrei de que dificilmente eu voltaria a ganhar o que Wilcox me paga.

- Dinheiro não é tudo.

- Sabe que não é o que eu penso, cabeça-oca.

- Você era um bom professor.

- Rose, eu era horrível. Se eu tivesse tido aulas comigo mesmo, teria abandonado o colégio. E os pais... os pais não gostavam nem um pouco de mim. Como é que eu poderia esperar algum respeito?

- Bobagem. Não gostavam porque você tinha senso de humor.

- E eu ainda tenho. É por isso que não posso voltar a dar aulas para o primário.

- Já salvou o pescoço de muitos alunos.

- O que não me torna mais qualificado. E por que tocou no assunto? Aquele pessoal da escola andou ligando?

Rose ergueu os olhos da xícara bonitinha de café, gorda e colorida, e pareceu séria ao encarar Bruce.

- Ninguém andou ligando. Só estou preocupada.

- Com o quê?

- Com o fato do seu chefe ser a pessoa mais instável que eu já vi. Ele é simpático - de um modo geral. Mas estranho.

- Sei lidar com Wilcox. Ele é uma ameaça para qualquer outro mortal, mas não para mim.

- Claro.

Rose abriu outra revista. Bruce sabia o que ela procurava: mais rostos conhecidos. Sua estréia no mundo da moda havia sido sobre uma passarela, mas a carreira não tinha vingado – consideravam-na acima do peso para desfilar. E, por mais rígido que fosse o regime, Rose não era capaz de se livrar da maldição que corria pela família, ossos largos que preenchiam uma silhueta.

- Acho você bonita – Bruce disse, para o espanto da garota.

Rose fechou as revistas e ficou corada.

- Obrigada.

Bruce abriu um sorriso estranho e tomou o resto do suco.

Assim é se assim lhe parece

- Eu mesma. Moira Harris. Prazer em conhecê-la.

Moira não percebeu, ou fingiu não perceber, que Rose a observava de alto a baixo. As duas eram opostos completos - Moira de cabelos castanhos e compridos, camisa branca e calças pretas; Rose loira de cabelos curtos, numa saia balonê rosa-choque e uma blusa de tricô preta.

Claramente, a nova assistente não parecia representar nenhuma ameaça.

E Moira, no silêncio de sua mente, se perguntava como é que uma pessoa como Bruce saía com alguém tão espalhafatoso quanto Rose.

***

- E foi isso.

- E ele não apareceu de novo?

- Pelo menos não até a hora em que eu fui embora. Bruce disse que era um cmportamento normal, então eu nem discuti.



Moira estava devolta à sua caixa-de-sapatos em Liverpool Street, conversando com Layla pelo telefone. Pés descalços no chão acarpetado, só a luz do abajur acesa, iluminando o poster de Albert Einstein na parede oposta.

Não explicara para Layla sobre a odisséia do GPS - ia ser complicado demais, nem ela entendia o que estava acontecendo. Dissera em termos genéricos que Wilcox tinha sumido e depois que Rose tinha ido visitar o namorado de maneira surpresa.



- Dizem que os opostos se atraem, e parece bem o caso... eles parecem tão diferentes!

- Meu bem, de repente ela é um crânio numa saia rosa, ué. Afinal, você só a viu por dez minutos! De repente ela o faz feliz na cama, cada louco com a sua mania.


Moira deu uma risada cansada.


- Layla, nisso você tem razão. Pelo menos nisso.

Monday, June 26, 2006

Visita

Antes que Moira retornasse, a campainha tocou. Bruce, contrariado, tentou ignorá-la, mas levantou-se para atender, infeliz, imaginando o que mais o destino havia reservado para aquela tarde. Só duas pessoas, além dele mesmo e de Moira, costumavam freqüentar a casa de Wilcox, sendo a primeira Mike, que não se contentava em tocar uma única vez; não, tinha a necessidade de compor uma sinfonia com a campainha.

A segunda visita era uma vizinha magricela, que se armava de um pedido de açúcar ou “uma xícarazinha com um pouco de pó de café, por favor” como pretexto para bisbilhotar a vida do professor.

Não se tratava, felizmente, de nenhum dos dois. Para a surpresa de Bruce, quem resolvera aparecer em um lugar tão inusitado não foi outra senão Rose.

- O que está fazendo aqui?

Rose perdeu o sorriso.

- Era uma surpresa. Está ocupado?

- Não, na verdade. Eu só...

Bruce tentava associar a visita ao que ocorrera no restaurante italiano. De alguma forma, todas as estranhezas do universo pareciam ser conseqüência daquele dia.

- O professor está aí?

- Não, só eu e a outra assistente. Entre.

Rose deixou o casaco no braço do sofá. Pareceu sem jeito diante de tanta bagunça.

- Não é o nosso melhor dia, como pode ver. Moira estava...

- Quem chegou? – Moira em pessoa apareceu, vinda da cozinha.

Rose olhou para ela, espantada. Então, seu sorriso se alargou.

- Você é a outra assistente?

Bruce fez a cortesia de apresentar as duas. Trancou a porta da casa, certificando-se, antes, de ninguém mais se aproximava.

Friday, June 23, 2006

Considerações sobre o passado

- Sei lá. Talvez para vê-los de perto... Eu pelo menos não tive oportunidade para isso - Moira deu de ombros - Por exemplo, não tenho a menor idéia de como deviam ser meus pais. Como a voz deles era. Se eles gostavam um do outro.


Moira riu - um riso cansado, de quem já pensou na possibilidade várias vezes e não viu solução possível para o dilema. Olhou para o teto - o lustre tinha grandes teias de aranha.


- É suficiente para entortar a cabeça de alguém. Acho que é por isso que eu fiz Matemática e não História. Os números não tem passado ou futuro.

- Mas você tentaria alterar o passado? Para que seus pais não morressem?

- Não sei se ia ser uma boa idéia. Não, melhor dizendo: não ia ser uma boa idéia.

- Por que?

- Porque nem sempre uma mudança positiva continua sendo positiva com o passar dos anos. OK, meus pais sobrevivem àquele acidente. Eu possivelmente ganho um irmão ou uma irmã... do jeito que dizem que eles eram, eu provavelmente seria filha de pais divorciados. E por aí vai a coisa. Ou talvez não. Mas não adianta pensar nisso.


Ela se levantou, indo na direção da cozinha.


- Até prova em contrário, o passado não pode ser alterado.

A idéia é discutida sem (ou quase sem) nenhum crédito

- Moira, anos de trabalho me ensinaram que, mesmo quando parece que ele não vai voltar, e você se prepara para agradecer aos Céus por tanto, ele volta. Wilcox funciona como um reloginho desregulado, mas a hora certa sempre chega. Portanto, relaxe e aproveite a vida.

Bruce esticou o pescoço para trás. Recebeu um estalo dolorido.

- Viagem temporal. Não é sério, é? – perguntou, despreocupado.

Moira não respondeu de imediato. Talvez pensasse que a resposta poderia comprometer sua sanidade.

- Bem, que parte dela? – indagou, por fim.

Bruce sorriu:

- Eu arriscaria dizer a parte em que a pessoa volta no tempo?

- Você é um incrédulo. Tecnicamente, o aparelho funciona.

- Mas você não espera que alguém realmente possa construir... uma máquina... que de fato...

- Não subestime a humanidade. Gente como o seu chefe, quando obcecada o bastante, obtém resultados espantosos.

- É o seu chefe também.

Moira sacudiu os ombros; Bruce se isentou da conversa para refletir com mais seriedade a respeito dos objetivos de Wilcox. Não confiaria à mente do professor nem os cuidados de uma folha de papel, quem diria da humanidade e sua História.

- Quando penso nisso, penso nos anos sessenta e em cenários de papelão de séries de tevê baratas.

Moira deu uma risada. Bruce achou que era um bom caminho.

- Mas se eu pudesse voltar, mandaria aquele cachorro para um canil antes que o professor pudesse achá-lo.

- Você tem uma natureza cruel.

- Sou a pessoa mais dócil que conheço. É verdade. E, de alguma forma, sei que o cachorro influenciou as idéias do Wilcox. Seria uma forma de salvar o mundo e dormir em paz pelo resto da vida. Eu voltaria, daria um fim ao cachorro, retornaria ao presente, destruiria a máquina e estaria tudo acabado em menos de uma hora. Não posso conceber viagens temporais para outra coisa.

- Talvez rever alguém da família? Alguém que já esteja morto.

Bruce mordeu o lábio inferior.

- Para quê? Assistir de camarote? Estão mortos, de qualquer jeito.

Das possíveis conseqüências de um cálculo errado

Moira bufou, voltando para dentro da casa.


- Perseguir como? Eu também não tenho carro.

- Você realmente ficou preocupada com o GPS.


Ela bufou novamente, pegando Fahrenheit pela coleira. Era incrível como o cachorro obedecia, enquanto ela andava de volta para a sala.


- Digamos que eu estou com medo do uso dessa máquina. Se amanhã a gente acordar numa república totalitarista por culpa de alguma armação do nosso chefe, eu não vou conseguir dormir.

- Provavelmente ele vai querer só ver a Marylin Monroe. Anda, Moira, a gente nem sabe o que ele vai fazer com isso...E nem sabemos se essa máquina funciona. Você mesmo disse, ele não tem como atravessar a tal de dobra no tempo! Eu trabalho com o professor há séculos, ele é perfeitamente inofensivo. Maluco, mas inofensivo.

- Pode ser. Mas eu não tive tempo de avisar do possível erro de cálculo... Então, se ele aprendeu a quebrar a barreira entre passado e presente, vamos ter que rezar para ele saber voltar pro nosso tempo!


Os dois sentaram um na frente do outro na sala atapetada. Fahrenheit agora mastigava o que tinha restado da caneta-tinteiro de Wilcox. Moira abraçou os joelhos, pensativa, os olhos parados no cachorro.


- E enquanto isso? O que é que a gente faz? Senta e espera ele retornar?

Thursday, June 22, 2006

A fuga

- Não sei. Talvez ele seja uma espécie de Batman. Sem a boa aparência e um franchise milionário.

Os dois ouviram um escapamento de carro e Moira correu para a entrada da casa. Wilcox, no banco do motorista, sorria. Teve a indecência de buzinar duas vezes antes de partir.

- O que ele está pensando?! Bruce?

Bruce chegou a tempo de ver o carrinho se afastar. Moira, olhando para a rua silenciosa, parecia derrotada.

- Não se preocupe – Bruce disse. – Não acho que ele vá fazer alguma besteira com o seu GPS. Na verdade, eu acredito que, em um acidente, se precisasse salvar nós dois ou o aparelho, Wilcox salvaria o aparelho de bom grado, à qualquer hora.

Moira virou-se para ele, irritada.

- Não me consola. Para onde ele pode ter ido?

- Para a universidade. Talvez?

- Você tem carro?

Bruce sentiu-se desconcertado.

- Não.

- E vem aqui todos os dias?

- De metrô. E andando. Sou estranho, sim, você e o resto do mundo sabem disso. Está planejando segui-lo?

O Galpão

- Ah, não. Ah, não mesmo. Onde diabos ele está indo com o GPS? - Moira deu um berro, e antes que Bruce tentasse impedir, ela saiu correndo atrás de Wilcox.


Mas ele tinha desaparecido no quintal, que era nada mais do que uma érie de pequenos montes de sucata e um galpão pequeno. Fahreinheit mordia o cabo do pirulito abandonado, deitado no chão. Bruce alcançou a garota, que olhava em volta.


- Bruce, onde? Ele não pode ter sumido!

- É possível. É bem provável, aliás.

- Escuta aqui, ou esse maluco me conta o que ele vai fazer, ou...

- Moira, acalme-se!


Moira bateu o pé, olhando em volta mais uma vez. O galpão era minúsculo, parecia ser somente um quarto de despejo. Ela caminhou até a porta do galpão - estava trancada.


- Está mais calma agora? - Bruce tentou ser irônico.

- Bruce, você está pensando o mesmo que eu?

- Que o Wilcox é um maluco?

- Que o Wilcox é um maluco com algum laboratório subterrâneo?


Bruce olhou para os lados, sem saber o que responder.

Quando o professor mais uma vez ordena que Bruce não se intrometa na seqüência dos fatos

Wilcox tirou o pirulito da boca. Era vermelho e tinha formato de coração. O professor fazia um barulho irritante quando tentava chupá-lo, causando arrepios em Bruce.

- Pronto, é? – Wilcox perguntou, fora do ar.

- Pronto, está – Moira respondeu. – Mas não passa de uma caixinha bonita se não puder servir a seus propósitos.

Wilcox pareceu escandalizado. Deixou cair o pirulito, que foi imediatamente recolhido por Fahrenheit.

- Caixinha bonita coisa nenhuma. Estão olhando para um verdadeiro milagre da humanidade – e acrescentou, em tom severo. – Bruce, me arranje uma caixa de papelão.

- Tem uma atrás de você.

- Eu sei. Pegue-a para mim.

Wilcox vestiu um par de luvas de plástico enquanto Bruce contornava a sala para pegar a caixa. O professor insistiu que ele a forrasse com algo macio.

- Agora, Moira, faça o favor de desconecta-lo para mim. Isso mesmo, boa garota.

Com cuidado irritante, Wilcox tomou o aparelho de GPS nas mãos e, com delicadeza ainda maior, colocou-o dentro da caixa. Bruce tentou argumentar:

- Wilcox, o que diabos você pensa que está fazendo?

- Um pedaço do futuro. Não se intrometa, Bruce. É assim que as coisas devem acontecer, apenas aceite.

- O que me lembra, o restaurante...

- Que restaurante? Espere. Agora é um momento muito delicado.

Wilcox selou a caixa com fita adesiva. Depois, suspendeu-a e, sem palavra que explicasse, deixou Bruce e Moira a sós.

25.810.318 (ou Tempo Pretérito)

Moira voltou sua atenção totalmente para o aparelho de GPS. Ligava e desligava cabos, mexia no computador principal, martelava comandos no teclado e parecia estar em outro espaço e tempo, onde não podia escutar ou perceber a presença de nenhuma outra alma.

Depois de quase quatro horas, ela despertou do transe.


- Bruce, você ainda está aí?


O rapaz se aproximou da cadeira onde Moira, muito pálida, estava sentada. Ela olhava fixamente para o aparelho de GPS, sorrindo calmamente - embora suas mãos estivessem tremendo.


- E então? - Bruce perguntou.

- Ele queria ler a freqüencia? Acho que consegui!


Apontou o número que estava registrado na tela do computador principal: 25.810.318.


- Essa sopa de números significa alguma coisa? - Bruce pareceu confuso.


Moira apontou a sequência de números que apareciam na tela minúscula do GPS: 51.30°N 0.10°W - 25.810.323.


- Respectivamente a longitude e latitude de Londres, e o registro do tempo presente. O GPS vai ler sempre o tempo presente, e o computador teria que ler a onde eletromagnética que compõe o tempo pretérito. O passado. Mas isso não adianta nada.

- Você acabou de inventar um meio de encontrar buracos no tempo e diz que não adianta nada?

- Bom, eu posso achá-lo, mas como é que o Wilcox pretende atravsessar esse buraco? Isso eu não consigo matutar. Meu conhecimento pára aqui.

Wednesday, June 21, 2006

Mais um pouco de estranhezas

Wilcox entrou fungando. Alguma coisa parecia desagradá-lo, e foi com desconfiança que pousou os olhos nos trabalhos de Bruce e Moira. Abanou qualquer coisa frente ao rosto.

- Meus assistentes. Estão sentindo esse cheiro?

Bruce fez uma pausa. Encarou brevemente Moira, que respondeu em cumplicidade. Farejou o ar, mas não identificou coisa alguma.

- O que é? Gás?

- É o cheiro da ociosidade. Que está se impregnando no tapete e escapando através das frestas das portas, assustando as pessoas.

Bruce deu um suspiro de descaso. Indicou a mesa.

- Seu mapa, a propósito, está pronto.

- Mas não sem tempo! – Wilcox exclamou, indignado. – Há quantas semanas eu o incumbi disso?
- Há três dias.

Wilcox gaguejou:

- Bom, foram longos três dias!

Ele se moveu, nervoso, para perto de Moira, espiando o aparelho como uma criança teria observado uma vitrine da loja de doces.

- É bonito, muito bonito.

Bruce observou o professor, incrédulo. Cada nova aparição era mais esquisita do que a precedente. O episódio do restaurante italiano ainda o perseguia, inexplicável.

- Bruce, - o professor virou-se para ele. Moira pareceu aliviada. – Onde está o cachorro?

- Lá fora. Eu espero.

Wilcox estremeceu. Resmungou, enquanto abria a porta.

- Ele é o único que me ajuda a pensar!

Bruce e Moira passaram os minutos seguintes em silêncio, os dois olhando para o corredor e temendo que o professor retornasse. Quando o mundo, ao que tudo indicava, era mais uma vez seguro, Bruce, sorrindo, retomou o trabalho:

- Se estiver pensando em me perguntar como eu fui capaz de agüentar durante tantos anos, simplesmente não pergunte.

O Porém da Encomenda

Moira deu de ombros, voltando a prestar atenção no aparelho à sua frente.


- Eu gosto de mapas. Sempre carrego um na bolsa.

- É um hábito estranho - Bruce sorriu.

- Ei, eu conserto computadores... Hábitos estranhos são minha praia.


Depois de alguns instantes, ela voltou a observar a máquina, que tinha o tamanho de um bloquinho de anotações com uma tela de cristal líquido.


- Vai ser um caso complicado, usar isso aqui para rastrear fendas temporais. Tem um erro que eu não vou conseguir contornar - ela disse, voltando sua atenção para os mapas que Bruce prendia na mesa.

- Eu suponho que você poderia explicar, se eu entendesse alguma coisa sobre isso.

- É bem simples. Em teoria, os dados do GPS são calculados para serem enviados para o satélite a uma velocidade constante. Mas isso é como a luz - a velocidade constante só é possível no vácuo.

- E qual o problema? Quero dizer, eu notei que não estamos no vácuo. Você me entendeu. O problema dessa informação não trafegar no vácuo.


Moira soltou um suspiro, pensativa.


- Basicamente, como a mensagem se dispersa, pode haver erros no cálculo.

- Oh-oh.

- Nada de grave. Vamos brincar com essa hipótese de viagem no tempo. Você poderia chegar um dia ou dois antes do planejado, se a freqüência for enviada e rastreada incorretamente.

- Um ou dois dias, tudo bem. O problema é ir parar um século antes. E a volta pro dia de hoje?

- Isso é um outro problema. Você pode acabar voltando um ou dois dias depois do dia correto. Abre uma série de possibilidades. Mas claro, tudo teoricamente. Eu não seria louca de testar isso.

- Você não, mas o professor sim.


Como que para confirmar a tese, Wilcox emtrou na sala no instante seguinte.

Em que se duvida mais um pouco da sanidade do Prof. Wilcox

Bruce apareceu pouco tempo depois; trouxe alguns rolos de papel. Segurava uma caneta com os dentes, o que Moira pareceu achar digno de piada.

- O que foi? – Bruce perguntou, desenrolando as folhas sobre a mesa. Usou alfinetes para prendê-las.

- Nada com o que se preocupar – Moira balançou a cabeça. – O que está fazendo?

- Um mapa. Dividido e feito para montar, diversão garantida. O professor pediu para que eu desenhasse, Deus sabe por quê – ele desviou a atenção para o aparelho de GPS. – Embora não seja muito difícil tentar adivinhar...

- Espere aí, você fez esse mapa?

Bruce sorriu.

- Parece absurdo? É um hobby.

- Como consegue tempo?

- Eu sou um homem de muitos talentos. Você pode pensar nisso como uma compensação.

- Compensação?

- Eu faço mapas.Você constrói máquinas do tempo.

Moira deu uma risada. Algum tempo depois, quando cada um já retomara os respectivos trabalhos em silêncio, ela perguntou:

- Ele não pensa nisso de verdade, não é? É apenas um trabalho teórico.

Bruce tentou evitar um sorriso irônico.

- Mas é claro.

Um pequeno problema de programação

Moira remontou o aparelho de GPS. Passara a manhã de segunda-feira trabalhando com o aparelho, que Wilcox tinha lhe cedido, e agora, com o estômago roncando, finalmente tinha tempo para se sentir exausta.

O pedido no bilhete escrito pelo professor - transformar o aparelho num leitor de ondas eletromagnéticas custasse o que custasse - era na melhor das hipóteses um quebra-cabeça montado às cegas. Moira sabia que Wilcox era um louco de pedra, só não sabia o quanto. Até aquele instante, todas as hipóteses sobre um leitor de ondas magnéticas para vasculhar "dobras temporais" tinham sido exatamente hipóteses.

O que ele queria, afinal? Ganhar um prêmio Nobel enfiado dentro de uma casa no Hampton?


- Bruce? Que horas são?

- Meio-dia e quinze, se precisa mesmo saber - ele berrara da outra sala.

- Você vai almoçar?

- Eu ainda tenho um monte de coisas para fazer.

- Idem aqui. Aonde foi parar o chefe?

- Não sei, mas é melhor que ele fique longe por um tempo. Assim tenho tempo para pensar em uma desculpa para o cachorro ter comido a caneta-tinteiro dele.

Tuesday, June 20, 2006

Festa

Bruce havia aprendido a andar de bicicleta por um preço muito alto. Tinha dez anos quando, sozinho e destemido, tentando provar algo a si mesmo, despencou de uma ladeira e ganhou um braço fraturado; Honoria decidiu que ele necessitava de um novo exemplo masculino.

Poucos anos mais tarde, Robert O’Hara entrou na vida dos dois. Bruce, então, já experimentara toda sorte de exemplos que a mãe pudera obter – desde o tio Corny, parente de grau indefinido (se parente, de fato), ao estranho professor de Geografia que tinha pânico de meninas.

- Rob gostaria muito de ter você aqui – Honoria havia telefonado às seis horas da manhã. Bruce ainda estava enrolado nas cobertas, sem muita certeza de que lugar era aquele e muito menos de com quem estava falando. – Nós encomendamos alguns salgadinhos e a Nola vai fazer aquele doce de que você e Finn tanto gostam.

- Bom, bom.

- Oh, Bruce, me desculpe. Eu acordei você?

Bruce fez um esforço para se levantar. Sentou na beirada da cama, esfregando os olhos. O sol mal nascera.

- Na verdade, a senhora me fez um favor. Eu estava sonhando com o meu chefe. Ele só tinha um olho e usava um camisolão. Horrificante.

Do outro lado da linha, Honoria fez silêncio.

- Bruce, você está bem?

- Continue, eu estou ouvindo. Então, o aniversário de Rob. Quantos anos?

- Sessenta e um. Ele não gosta de comentar, então fique quieto. Bruce, eu preciso de um favor.

- Diga.

- Preciso que vá pegar Finnegan no colégio. Quando estiver vindo para cá.

Bruce ergueu um pouco as sobrancelhas, ainda sonolento e quase deixando-se desabar sobre o colchão.

- Finnegan? Mesmo? Ele não pode ir sozinho?

- Não.

- Tudo bem, eu o levo.

Honoria despediu-se; estava gritando com as empregadas e os preparativos não demorariam a esgotar sua paciência. Na cozinha, lidando com o café da manhã, ocorreu a Bruce – e a faca que fatiava o queijo vacilou – o que Rose faria se soubesse da festa. Provavelmente convidaria a si mesma e daria início a uma avalanche de eventos para os quais nenhum deles estava pronto.

Rose jamais poderia saber.

Monday, June 19, 2006

Pas d'passé, pas d'avenir

J'ai tout cassé
Avant d'partir
J'ai pas d'passé
J'ai pas d'avenir
("Banilieue Nord", do musical "Starmania)
(Eu destruí tudo
antes de ir embora
eu não tenho passado
eu não tenho futuro)
Norwich dormia o sono dos justos quando Moira chegou na casa do avô. Edward Morris morava no andar de cima de sua loja de produtos para jardinagem, num lugar que parecia cada vez menor, tamanha a quantidade de coisas que o velho Edward guardava.
A casa tinha um cheiro característico: madeira encerada, flores, feijão em lata (Edward comia no café, apesar das ordens contrárias de metade da classe médica de Norwich). Os porta-retrtatos, que Moira não gostava de ter em seu apartamento, se acumulavam nas paredes da casa: Stella numa bicicleta, no uniforme de bandeirante, na faculdade (com as mãos ao redor de Arthur Harris, cabeludo e muito magrelo), na formatura e no casamento.
Moira sabia que Stella era uma mulher teimosa. Todas as fontes diziam isso, para comparar com o "gênio dócil" de Moira, provavelmente herdado de Arthur Harris. Pensava em silêncio como teria sido viver com os dois - será que ela teria fugido de casa ou viveria com os pais até os trinta? Teria irmãos? Seus pais ficariam casados até o fim, ou se divorciariam no meio do caminho?
Era complicado pensar em suposições. A idéia de viagem no tempo, especialmente quando Wilcox a elaborava de maneira tão leviana, lhe incomodava mais do que gostaria de admitir. Daria qualquer coisa para voltar no tempo por um instante e poder ver os pais vivos - pelo menos para ter uma idéia de como eles eram fora das fotografias.
- Moira, você não vai dormir?
Edward aparecera no corredor, vestido com o velhíssimo pijma de flanela azul que a esposa tinha feito há muito tempo atrás.
- Já vou, vovô. Não sinto sono ainda.

Tuesday, June 13, 2006

Whisky

Um poema de Bruce Glendoning, escrito na quarta série:

Hoje, os guerreiros de pernas nuas lutaram,
Uma taça dourada ganharam,
O povo saiu às ruas para festejar.

E aqueles aldeões serviram a bebida sagrada
Que dizem que ao paladar tanto agrada
E beberam, e beberam, e beberam.

Burp, ic, ic.

Meu pai está morto,
E acho que todos eles, logo, logo, também vão estar.


Uma carta de recomendação da Profa. Martha Swann:

“Sra. Honoria Glendonig,
Talvez Bruce esteja precisando de férias.
Atenciosamente,
Martha Swann.”

Da agenda de Moira Harris, II

Coisas para fazer: roupas para lavar / passar aspirador no apartamento / pagar contas: água, telefone, multa da biblioteca.
Arranjar aparelho de GPS. Ordem do prof. Wilcox.
(Às vezes me pergunto o que diabo eu estou fazendo trabalhando pra esse louco)
Fazer supermercado.
(Como foi que ele apareceu no restaurante ontem?!)
Mandar um cartão de desculpas pro Nicola. Explicar que meu chefe é um maluco. Ou estava bêbado.
Visitar meu avô no sábado. Levar mantas.


(por que estou com a impressão que o Bruce está mais perdido do que eu nessa história. Mais fácil lidar com binômios de Newton do que com esse maluco do Wilcox.)

Tracklist para a semana: "The sea refuses no river", Pete Townshend / "Sitting on my sofa", Kinks / "Soldier's Song", Hollies. - talvez alguma coisa de Bob Dylan? Pelo meno o Bruce não me amola.

Monday, June 12, 2006

Um incidente estranho com explicação futura

Pouco antes de um gato miar e levar uma sapatada, o Prof. Wilcox desabou em cima de um homem. Ele não se deu conta de que o homem era um homem, com tantos braços e pernas quanto um homem normal teria, até que se levantou, resmungando, massageou as nádegas e olhou para baixo. Um senhor estava estatelado no chão. O senhor, Alphonsine pôde ver, estivera lendo um jornal antes do acidente, e agora uma edição do The Times jazia desfeita em várias direções.

- Meu bom senhor, mil perdões! – o Prof. Wilcox pôs-se a se desculpar com o homem inconsciente, ao mesmo tempo em que tentava deixá-lo em posição mais confortável.

Recolheu o The Times sujo, dobrou-o e o deixou sobre o colo do senhor, correndo tanto quando podia – tanto quanto a idade permitia. Foi vítima de mais um dos surtos que o acometiam sem horário definido, onde pensava em si mesmo como um caderno de notas ambulante.

- Falhas. Três já catalogadas. Seja qual for o nível da distorção temporal precisarei remendar antes de empreender uma nova tentativa. Remendar, boa palavra. Pobre senhor. Se eu soubesse o nome, mandaria flores e um cartão – olhou para cima, tentando reconhecer os prédios. – Agora falta pouco para as oito da noite e espero estar no bairro certo. O restaurante não fica longe.

Embora houvesse chegado praticamente sem fôlego, Wilcox adentrou o Nicola’s com a mesma elegância que um homem, em tempos passados, teria adentrado seu clube de preferência. Cumprimentou o próprio Nicola como se fosse um amigo íntimo.

- Alô, meu bom homem. Eles estão na cozinha, não? – perguntou.

- Senhor – Nicola olhou para os lados. – Eu lhe conheço?

- É óbvio. Não, ainda não. Bem, agora conhece. Se me dá licença...

Bruce quase engasgou com suco ao reconhecer o professor. Levantou-se abruptamente, o que atraiu a atenção de Moira. Ela pareceu igualmente surpresa.

O professor, vermelho, descabelado, sorria. Até onde Bruce podia compreender, ele tentava se exibir, talvez pensando em si mesmo como um artigo ímpar, algo que não se vê jamais na vida.

- E então? E então, Bruce? Você duvidou, e aqui estou eu.

- Mas o quê...?

- A comida parece boa, de fato.

- Professor, o que o senhor está fazendo aqui?

O professor olhou para Bruce, penalizado.

- Ah, Bruce. Você vai entender logo. É incrível como alguns poucos dias a mais fazem diferença no intelecto. Etc, etc. Moira, olá.

Nicola apareceu, zangado e com o rosto vermelho.

- Mas o que é isso? Um tour pela minha cozinha? Senhor, eu ainda não...

- Meu bom homem de sangue italiano, eu peço desculpas. Das próximas vezes em que nos encontrarmos, eu serei mais educado. O senhor verá. Eu mesmo já o vi, na verdade.

Bruce, nervoso, puxou o professor para um canto.

- Wilcox, você, por acaso, enlouqueceu?

- Absolutamente.

- Como sabia que estávamos aqui? Eu achei que você estivesse trabalhando.

- E estou. A todo vapor – o professor suspirou. – Bruce, nada me daria mais prazer do que explicar tudo aqui e agora, mas não posso me intrometer. Você saberá quando for o tempo certo.

Ele se desvencilhou de Bruce.

- Sinto muito, Bruce. Mas é pela minha segurança. E antes que eu me esqueça, I chanced upon a farmhouse where a woman took me in. Ou coisa assim. Demônios, jamais deixarei que ela escolha outra vez.

- Como?!

Wilcox acenou para Moira, que parecia atônita, abraçou Nicola e despediu-se:

- Amanhã, não cheguem atrasados. Ah, como tudo é belo visto daqui.

Considerações sobre Alphonsine Wilcox

A cozinha do Nicola's, administrada pela mãe e pelo irmão do dono do restaurante (o Giacomo, que era meio surdo), poderia ser classificada como um set de filmagem de uma versão de "Festa de Babette" para a RAI. Muita gente, muitos gritos e, principalmente, muita comida. Três panelas gigantescas de molho de tomate eram mexidas como um caldeirão de bruxa, e massas eram montadas com precisão industrial. O carro-chefe da casa, sem ser a lasanha, era um peito de frango recheado que tinha como apelido "Sophia Loren".

Nicola arranjara uma mesa para Moira e Bruce num canto menos atrapalhado do local, e fizera questão de não cobrar pelo antepasto e pela sobremesa (os especiais do dia eram tiramisu e cannolli de chocolate, "o Giacomo fez hoje, mais fresco só ele mesmo"). Bruce comera tanto que até assustara Moira:


- Eu vou dar parte do professor na Assembléia de Direitos Humanos. Você parece que não come desde a última Olimpíada!

- É que a comida está boa. E eu estou me vingando por causa do peixe cru a que fui infligido.

- Jantar de negócios?

- Na verdade, a Rose gosta de comida japonesa.

- E você, pelo visto, detesta.


Ele assentiu, dando mais uma garfada na lasanha. Moira achou por bem mudar de assunto.


- Escuta, Bruce, afinal de contas, que apito toca o professor Wilcox?

- Como assim?

- Bom, OK, ele é excêntrico.Mas não me parece que é do tipo que joga dinheiro pela janela. Me conratou a peso de ouro para quê? Só consertar os computadores dele? Não te parece, sei lá, estranho? Até pra ele?

Nicola's

O restaurante que Moira havia indicado ficava dentro de um porão. Bruce saltou do táxi e olhou, surpreso. Precisou apontar antes de ter certeza:

- Lá?

Moira fez que sim com um aceno de cabeça. Bruce colocou as mãos dentro dos bolsos do paletó – era seu único escudo.

- Tudo bem. Eu sou aberto a todos os tipos de novas experiências.

- Mesmo?

- Eu comi peixe cru semana passada.

Nicola, o dono do restaurante, era um homem gorducho e de cabelos muito escuros. Estava usando dois telefones ao mesmo tempo, brigando com um dos garçons, riscando um bloquinho de notas e, ainda assim, arranjou um jeito de sorrir ao avistar Moira.

- Como vai, Nicola? – a garota cumprimentou.

Nicola fez, impossível dizer como, um gesto com a mão esquerda, pedindo para que os dois aguardassem enquanto ele se livrava das ligações. No ínterim, Bruce inspecionou o lugar. Abafado. Cheiro de vinho. Aparentemente respeitável.

Um grupo de estudantes – pareciam estudantes, vestiam-se e falavam como estudantes – puxou em coro um hino desconhecido que cantavam tanto em italiano quanto em inglês.

- Moira – Nicola libertou o último fone. O fio escuro ficou enroscado em seu punho e ele precisou lutar um pouco. – Ah! Bem. Faz tempo que não vejo você!

Moira sorriu, ajudando-o.

- Eu precisei sumir. Consegui um emprego.

- Verdade? – e olhou para Bruce. – Seu amigo, ele parece intimidado pelo meu restaurante – Nicola, depois, deu um sorriso sem graça, temendo haver cometido alguma gafe. – Ele veio com você, não veio?

- Veio. É meu colega de trabalho.

Bruce estendeu a mão. Nicola aceitou o cumprimento, desconfiado.

- Bruce Glendoning.

- Bruce. Ora, nome forte.

- Obrigado. Se dependesse na minha mãe, eu seria Hermes.

- Nicola, por acaso você não teria uma mesa vaga, não é? – Moira perguntou.

O dono do restaurante coçou a cabeça, pensativo.

- Infelizmente, hoje estamos com bastante movimento - franziu o cenho; ponderou a respeito do que dissera. - Infelizmente não, quero dizer! Graças a Deus! Parece que nós somos um sucesso entre os universitários. O que eu realmente digo é que, talvez, se vocês esperassem um pouco...

Ele se interrompeu. Abriu um sorriso otimista e balançou o indicador, como se abençoado com a melhor das idéias.

- Mas você é da casa, Moira. A cozinha está sempre, sempre, à disposição. Se seu amigo não se importa de comer entre panelas...

- Eu sou aberto a todos os tipos de novas experiências.

Sem compromisso

Na segunda-feira choveu a tarde toda e Wilcox tinha ficado preso na Universidade por conta de um compromisso, de modo que Bruce e Moira estavam trabalhando sozinhos no escritório - Bruce organizando anotações e Moira arrumando os computadores da sala (por que é que um sujeito precisava de cinco computadores só para si era algo incompreensível).


- Bruce, você se importa se eu colocar alguma música para tocar?

Ele fez que não com a cabeça. Moira pegou um CD da bolsa e pôs para tocar. Logo, o som dos Hollies - Sorry Suzanne - ecoava pela sala.


- Você gosta de música velha, hein?

- Gosto de tudo, música "velha" inclusive. Por que? Não gosta?

- Prefiro os Beatles aos Hollies.

- Bom, pelo menos estamos na mesma década, no que diz respeito à música. Ia ser complicado se você gostasse de Bob Dylan e e eu gostasse, sei lá, de Prodigy.

- Eu gosto de Bob Dylan - Bruce riu - Ei, você gosta de comida japonesa?


Moira fez que não com a cabeça.


- Para ser bem sincera, nada me faz mais feliz que um prato de lasanha na minha frente. Escuta, taí uma boa idéia. Cê topa jantar lasanhas? Conheço um bom restaurante em Oxford Street.

- Restaurante italiano mesmo? - Bruce pareceu interessado.

- O dono é o Nicola, é de Rimini. Golpe mortal: eles fazem um tiramisu de chorar de tão bom.

- Eu não costumo sair com colegas de trabalho.

- Considerando que seus colegas de trabalho são o prof. Wilcox e o Fahrenheit, perfeitamente compreensível. Mas sem compromisso nenhum. É que eu estou morrendo de fome mesmo e não quero jantar sopa em lata sozinha em casa de novo. Tudo bem por você?

Friday, June 09, 2006

Um jantar

Bruce abriu a porta. A primeira coisa que Rose percebeu foi que um pedaço da estante da sala havia desabado. Os livros ainda estavam espalhados pelo chão.

- O que houve? – perguntou.

- Um parafuso solto – Bruce sorriu. – Interessante, realmente interessante, é ter acontecido quinze minutos antes de você chegar. Pense. Talvez seja um aviso. Vamos escolher outro restaurante?

- Não vai se trocar? – Rose o olhou da cabeça aos pés.

- Já estou trocado.

Bruce detestava comida japonesa. Rose achava o sacrifício dele mais do que cavalheiresco – uma verdadeira prova de fé, se alguém lhe perguntasse.

O restaurante estava cheio. Por alguma razão, Rose teimava em esbarrar com a própria bolsa nos braços de Bruce. Em determinado momento, ele simplesmente ergueu as sobrancelhas.

- Rose, por mais que eu ache sua persistência comovente, não penso que a sua bolsa queira me engolir.

Rose sorriu.

- Gostou?

- Gostei?

- Da bolsa. Eu mesma a fiz.

Bruce balançou a cabeça.

- É bonita.

Rose pareceu insatisfeita. Depois de algum tempo de espera, os dois conseguiram uma mesa. Um grupo de quatro garotas tagarelas e de cabelos muito escuros estava acomodado logo atrás deles. As garotas revezavam uma câmera digital enquanto tiravam fotos, o flash explodindo de cinco em cinco minutos. Bruce as observava como se quisesse vê-las derretendo em ácido.

- Então. Como vai o trabalho?

Bruce piscou. Voltou sua atenção a Rose.

- Relativamente... relativo.

- E o novo assistente?

- É uma mulher.

Rose fez uma careta estranha.

- Mulher?

- Pelo menos se parece bastante com uma.

- Sempre pensei que aquele seu professor tivesse medo de trabalhar com mulheres.

- O casamento já foi o suficiente. Houve alguma resistência, se é o que você quer saber. De qualquer jeito, Moira está em experiência.

- Moira.

- Moira Harris. O nome que eu mais tenho repetido nos últimos dias.

- O que essa Moira Harris faz? – e acrescentou, em um tom quase inaudível –Bruce, pare de olhar assim para as garotas. Elas não vão atacá-lo.

- Desculpe. Moira se formou em Matemática. Ela também conserta computadores.

Rose deu um resmungo. Não pôde enterrar o assunto. Alguns minutos depois, quando a comida já havia chegado, perguntou:

- Ela é legal, ao menos?

Bruce assentiu.

- Ela mal fala. Ao menos não fala comigo – Bruce cutucou o prato com um garfo. – Isto aqui é um olho de peixe?

Uma semana

- E aí? Como tá saindo o trampo novo?


Layla e seu cabelo roxo não destoavam do outros freqüentadores do Lim's Fish and Chips, o minúsculo restaurante em Portobello Road onde ela e Moira costumavam almoçar. Dado os tipos estranhos que moravam no bairro alternativo, provavelmente era Moira, com seu ar convencional, quem aparecia como se houvesse um holofote em cima dela.

Era sábado, dia da feira de antiguidades de Portobello, quando o mundo trancava a rua e o velho Lim mal dava conta de tanta gente vindo comer peixe com batata frita ou sanduíche de atum em seu recinto, que era praticamente um buraco na parede com quatro mesas e um balcão. Fazia uma semana que Moira trabalhava em Hampton e ela fora visitar Layla para lhe contar as novidades.


- Não tá nada mal. Quer dizer, consertar computadores, programar coisas... Fácil. Estranho é o chefe.

- O tal de Wilcox?

- Esse. Pelo que entendi, um crânio. E rico.

- Solteiro?

- Divorciado, pelo que consegui fisgar. Por que a pergunta?

- Esses excêntricos costumam ser celibatários também. E você trabalha sozinha com ele?

- Não, tem o Bruce. O assistente do professor.

- Ah, legal! E ele? Outro excêntrico?

- Nah, só sarcástico.

- Opa, gostei dele, então. Nem sei que apito toca, mas sarcásticos são do meu clube. Cê vê o Jimmy! - Layla riu - E que apito ele toca?

- Tem uma namorada. Mas ele não fala muito nela. Aliás, ele não fala muito, ponto. Mas tudo bem. Ach que com o tempo ele se acostuma comigo e começa a conversar.


Moira afastou o prato e se levantou.


- Ô Layla, se você pudesse voltar no tempo, que você faria?

- Assistiria um show do Ramones no CGBC, Nova Iorque, no começo de todas as coisas belas - Layla respondeu, saindo do restaurante.

- Ramones! Não iria querer rever seus pais, ou qualquer coisa assim?

- Bom, eu iria fazer coias que eu não pude fazer por não ter nascido no período. Seria divertido. Vamos nessa?


Moira assentiu, e as duas saíram do restaurante.

Tuesday, June 06, 2006

Gentil

Bruce se inclinou com cautela sobre a caneca que ardia no fogão; retraiu-se ao sentir o cheiro. Notou, então, que o professor o observava, com alguma probabilidade enxergando a forma de se redimir.

- Bruce aqui, ele não conhece o assunto. Ou, no caso, finge que não conhece. Não é, Bruce?

- Eu li Ray Bradbury quando estava no colégio.

O professor riu e voltou-se, alegremente, para Moira.

- Enfim.Vou lhe mostrar o escritório, Srta. Harris.

Bruce deixou relutantemente que os dois partissem. Conhecendo o gênio do professor, começava a sentir-se responsável por Moira.

- Escute, escute. Não vão precisar de ajuda?

O professor o avaliou com curiosidade, abrindo, ao fim, um sorriso estranho, insano e cativante. Apertou a mão de Bruce e a sacudiu com energia, causando pânico no assistente.

- Meu Deus, você é gentil, Bruce, mas não entende nada de tecnologia! Agora Moira... Bem, talvez haja algum talento ali. Para uma mulher, eu quero dizer. Para alguém tão jovem. Moira vai precisar ser testada. Nunca se sabe em quem eu posso confiar, Bruce. Eu confio em você, eu confio. Mas você... e a sua inabilidade com números! Se fosse diferente, não teríamos tantos problemas. Eu até já poderia...

- Minha mão – Bruce cerrou os dentes. – Wilcox. A mão.

- Desculpe. Obrigado por trazer a caixa.

No jardim, Fahrenheit gania, amarrado a um tronco de árvore com sua própria coleira. Bruce, depois de haver sido enxotado, sentiu-se misteriosamente solidário com todas as criaturas do planeta. Soltou o cachorro, que disparou feito um trem bala para dentro da casa.

Teoricamente

Moira ergueu as sobrancelhas, sem saber o que responder. Aceitou a xícara que lhe era oferecida – café com algum licor de gosto estranho que ela não soube identificar.


- O que eu sei sobre viagens no tempo? Acho que o que todo mundo sabe... H.G. Wells, “Austin Powers”, “Em Algum Lugar do Passado”, “De Volta para o Futuro”, a teoria sobre tempos paralelos...

- Me fale um pouco essa teoria.

- Resumidamente, os eventos passados e os eventos de agora ocorrem ao mesmo tempo, em dimensões paralelas. De modo que seria possível, teoricamente, voltar ao passado, localizando uma espécie de fenda entre essas dimensões.

- Teoricamente – o professor ecoou, pensativo.

- Bem teoricamente.

- E o que seria preciso para localizar essa “fenda” no tempo, Moira?


Moira soltou um suspiro e tomou outro gole do café.


- Um milagre, ou pelo menos um GPS.

- Você diz o localizador via satélite?

- Isso, esse GPS. Alguns malucos acreditam que é possível localizar essas “fendas” no tempo reprogramando aparelhos de GPS para lerem o fluxo eletromagnético que forma – mais uma vez teoricamente – o que conhecemos como "tempo". Mas é maluquice. E o princípio de Novikov?

- Quem diabos é esse? – Bruce finalmente interveio.

- É um russo que fez uma teoria sobre as viagens no tempo. Você nunca poderia voltar no passado para impedir um evento, porque tudo está interligado. Mesmo que você retornasse, os eventos seguiriam em frente, com ou sem sua intervenção.

- Isso é uma bobagem! – Wilcox foi enfático.

- A idéia de viagem no tempo, em teoria, também é.

- Você gostaria de voltar no tempo, Moira?


A garota assentiu com um gesto de cabeça.


- E que evento você gostaria de rever?

- Meus pais, em Londres, nove de maio de 1978 – ela disse sem pensar. Era o dia em que a fotografia na praça perto da Torre de Londres foi tirada.

- O que aconteceu nesse dia?

- Eles ficaram noivos nesse dia.

- Aposto que sua mãe diz isso hoje com olhar perdido, se perguntando por que foi que ela aceitou.

- Meus pais morreram quando eu tinha três anos, professor – Moira respondeu friamente.


Foi a vez de Wilcox tomar um longo gole de seu café, visivelmente constrangido.

Monday, June 05, 2006

O professor apresenta seu mais querido hobby

Se Bruce tinha alguma intenção perversa a respeito do cachorro, desistiu assim que botou os olhos em Moira. Sem escolha, continuou equilibrando-se sem perícia, evitando sujar a meia na grama. Saltou até encontrar um pedaço de concreto.

- Isso não acontece todos os dias. Eu juro.

Moira evitava rir. Bruce, sabendo que pouca coisa deixaria a cena mais desconcertante, fez questão de abrir a porta para que a garota entrasse. Quando ele mesmo voltou para dentro da casa, já havia recuperado o sapato. Fahrenheit não estava à vista.

- Bem, Moira – o professor preparava mais uma caneca da bebida não-identificada. – Que você me desculpe. Não é a melhor casa de Hampton, mas eu não sou uma pessoa extravagante, como vai ter a chance de descobrir. Eu espero – balançou o dedo indicador, falando num tom que escondia tanto uma brincadeira quanto uma ameaça – Se durar mais de um mês.

Os dois olharam para Bruce, o professor parecendo radiante.

- Conseguiu? Que bom. Eu estava falando para Moira sobre os velhos computadores.

Bruce deu um sorriso irônico.

- É mesmo?

- Vocês só precisam de uma técnica? – Moira perguntou.

O professor balançou a cabeça.

- Depende, tudo depende. O que você sabe sobre viagens no tempo?

Bruce revirou os olhos. O professor ofereceu a caneca à Moira.

Telefonema

Moira acordou às sete, com o telefone tocando. Do outro lado da linha estava sua melhor amiga, Layla Keller.

Parênteses. Não existia amizade mais verdadeira, e mais estranha, do que a de Moira e Layla. A primeira passava por uma nerd sem óculos com seu diploma em Matemática e seu cabelo comprido, lambido e de cor indefinida. Layla colecionava tatuagens, piercings e só tinha o curso técnico de esteticista. E tinha o cabelo atualmente pintado de roxo hematoma. Os opostos se atraem. Fecha parênteses.



- Moira! Você pediu pra te ligar! Acorda!

- Hein? Bom dia, Layla. Que horas são?

- Siete de la mañana, benzinho. Anda, levanta desse sofá-cama e ponha-se pra funcionar. Cê não me vai perder o emprego, né, mona?!

- Ah, tá. Tô indo. Tudo bem por aí? Como está o Jimmy?


Jimmy era o namorado de Layla, um anglo-japonês tatuador. Os dois moravam juntos há quatro anos com os dois irmãos da Layla.


- Jimmy tá jóia. Melhor que a encomenda. Anda, levanta-te e anda! Se não eu vou até aí, hein? Tua síndica me mata! Cê sabe que a velha não gosta desta que vos berra, imagina... Levanta!


Meia hora depois, Moira seguia pelo trem com os fones de ouvido berrando "All Day And All Of The Night" no último volume e uma caixa de ferramentas um pouco maior no outro braço. O endereço que o Prof. Wilcox passara era de uma casa no Hampton, bairro que Moira conhecia muito mal porque não tinha nenhum amigo ou chegado que tivesse dinheiro a ponto de residir ali.

A casa em questão parecia perfeitamente normal e sem graça, com um cachorro marrom parado no jardim mal cuidado, escondendo alguma coisa em um buraco. Depois de alguns instantes deu para notar que era um sapato.

O dono do sapato - Bruce - apareceu correndo alguns instantes depois, pulando num pé só no meio do jardim.

Em Hampton

Bruce colocou a caixa no chão. Tocou a campainha pela terceira vez e aguardou, batendo, impaciente, a testa contra a porta. Mike, o filho de uma das vizinhas, acompanhava de longe. Segurava um gravetinho que usava para estalar nas barras de grades e portões. Bruce precisou implorar para que ele parasse.

- Você veio andando? – o menino perguntou, a voz abafada; estava enrolado em um cachecol grosso e colorido, com estampas de ovos de Páscoa.

Bruce hesitou antes de virar-se para ele. Seu humor para conversas decaía no mesmo ritmo da temperatura.

- Sim. Andando, completamente.

- Nossa! Você é louco. São seis da manhã.

- Obrigado, Michael. Eu peguei o metrô primeiro, se interessa. Uma pergunta: sua mãe sabe que você está na rua? Será que ela vai ficar feliz quando souber?

Mike pareceu enfezado, mas não quis responder. Foi embora, deixando Bruce tremer de frio em total privacidade. Quando o professor apareceu, chinelos e roupão, o cabelo espetado, não reconheceu o assistente de imediato. Depois, arregalou os olhos e começou a se desculpar.

- Céus! Eu me esqueci completamente de que você vinha!

- É um bom começo. Posso entrar?

O professor pediu para que Bruce deixasse a caixa sobre a escrivaninha do escritório. Serviu uma bebida aquecida e de cheiro forte. Bruce recusou – ao invés disso, sentou-se no sofá, esfregando os braços. Fahrenheit dormia no tapete, a língua rosada de fora.

- E a garota, Moira?

O professor sorriu.

- Não se preocupe com Moira, ela virá mais tarde. Vamos precisar arrumar a bagunça. Não quero assustar uma nova contratada.

Bruce assentiu, um pouco furioso.

- Por que o galpão está trancado? – perguntou.

O professor deu um sorriso estudado e mudou de assunto.

Num banco de praça

Please be stronger than your past
The future may still give you a chance

(George Michael, "Cowboys and Angels")

Moira não voltou direto para casa depois da entrevista de emprego com o tal Prof. Wilcox. Cruzou a cidade na direção do rio Tâmisa, a caminho da Torre de Londres.

Havia uma praça onde os prisioneiros eram executados em público. No século XX, ganhara um monumento em homenagem aos mortos das duas Grandes Guerras, o que Moira sempre via como uma grande ironia. Que a melhor foto que ela tinha de seus pais viesse justamente dali - Arthur e Stella, sentados num banco, ele um sujeito alto e desajeitado, ela uma moça muito magra e de cabelos muito compridos e ofensivamente lisos - era mais irônico ainda.

Ironias à parte, ela gostava de vir ali e se sentar no mesmo banco para pensar na vida.

Naquela tarde em particular, estava pensando se fizera bem em aceitar o mês de experiência com o tal Prof. Wilcox. Que ele era maluco, não precisava de muito esforço para descobrir - assim como não era preciso ser um gênio das relações humanas para saber que ele se impressionara com o truque do computador.

Mas ela ainda não matutara por que um professor de História precisaria da ajuda de uma bacharel em Matemática. Só precisava saber que o salário era bom e que, bem ou mal, o tal Wilcox e o tal Bruce eram excêntricos, mas não sociopatas (pelo menos à primeira vista).

Colocara os fones de ouvido, esticara as pernas e passara a escutar "Cowboys and Angels" sentada no banco, vendo a vida passar e o sol se pôr detrás dos prédios do centro financeiro da velha Londres. Enquanto durasse a música e a vista, não precisaria de mais nada.

Thursday, June 01, 2006

Mais um pouco de chá com leite e a nova babá

O Prof. Wilcox grunhiu, desconcertado. Bruce deu um sorriso amarelo e, não havendo mais ninguém para quebrar o silêncio, tomou a xícara nas mãos e se despediu:

- Eu não tenho nada na carteira, professor. É sua decisão. Boa sorte.

Deixou os dois sozinhos, fechando a porta atrás de si. O corredor estava praticamente vazio; a secretaria era um oásis de luz e calma. Elizabeth trabalhava em sua mesinha, os óculos insistindo em escorregar do nariz oleoso. Bruce abriu um sorriso estranho e balançou, com muita leveza, sua xícara.

- Alô, Elizabeth. Eu preciso de leite.

Elizabeth suspirou, mas sua caneta marca-textos continuou frisando parágrafos e parágrafos de algum tópico que, a Bruce, dada a carranca da mulher, parecia o mais desinteressante possível. Elizabeth interrompeu-se de súbito. Olhou-o com raiva:

- Você tem mãos, Glendoning – e mostrou as próprias mãos, uma delas borrada de tinta. –Duas.

Bruce escondeu a mão desocupada.

- Eu nunca tive ninguém para me servir, e você é boa e prestativa, Elizabeth. Você é. Na verdade, é a minha favorita. E, vindo da boca de qualquer outra pessoa, sei que o meu elogio pareceria uma tentativa... inútil de amolecer o seu coração enegrecido e, quem sabe?, ganhar alguns privilégios, mas não, não no caso. Não há nobreza que se compare à minha. – ele ameaçou sentar em cima da mesa. – Quer que eu fale da minha infância? Ainda carrego traumas.

Quando estavam os dois degustando o chá frio, Elizabeth começou, sem que fosse requisitada, a palpitar sobre Moira. Bruce recebeu os comentários em silêncio, balançando a cabeça.

- Um pouquinho sem graça e muito nova. Ela já é formada? Porque parecia um cachorrinho perdido – e Elizabeth adquiriu um tom mais sério. – Acha mesmo que o professor vai contratar uma mulher?

Bruce deu de ombros.

- Eu não sei. Não me arrisco a dizer o que se passa pela cabeça dele.

Elizabeth, engolindo o chá, ergueu as sobrancelhas em surpresa, lembrando-se de uma coisa:

- Glendoning, eu não lhe contei, mas ontem vi o professor em Camden Town.

- Camden Town? – Bruce livrou-se da própria xícara. Cruzou os braços. – O que ele estava fazendo em Camden Town?

- Foi o que eu me perguntei, você entende, mas nem pude dizer ‘oi’. Um piscar de olhos e – ela estalou os dedos. – Ele havia desaparecido. Estranho, não?

Quase meia-hora depois, o professor encontrou Bruce no corredor. Caminhava sem fazer barulho, parecendo temer que alguém estivesse perseguindo-o.

- Bem, meu caro Bruce. O que você acha? E seja sincero.

- Moira Harris?

- É claro.

- Ela parece saber o que faz. - forjou um sinal positivo com o polegar - Ei, ela conserta computadores.

- E?

- Eu não consigo nem desentupir minha caneta-tinteiro, se formos pensar.

- Sim. E o que mais?

- Professor, - Bruce fez uma pausa. - Eu faria uma avaliação um pouco mais detalhada se eu ao menos soubesse o que o senhor está procurando. Porque eu não sei, se ainda não percebeu.

- Sim.

- Esta é a minha cara de confusão. Está vendo? Sou eu confuso.

- Eu disse a ela que pode ficar um mês conosco. Como experiência. Fiz bem, Bruce?

Bruce não disse nada, aproveitando aquele pequeno momento de terror. O professor apertava os nós dos dedos, nervoso.

- Talvez. Não é a pior besteira já cometida pela humanidade. Talvez tenha feito bem.

- Ótimo. Excelente, na verdade! Porque vou precisar da sua ajuda, Bruce. Vai ser a babá dela – e deu um tapinha amigável no ombro do assistente. – Boa sorte.

- O quê?!

Do diagnóstico de um som

O professor olhou para Moira de alto a baixo, processando a informação que seu assistente tinha lhe passado, enquanto delicadamente tirava a mão do ombro da garota.


- Ah, claro, claro, o anúncio. Bem se viu que ela não é a Rose, não anda com aquelas roupas modernosas, não é mesmo? Mas a senhorita, posso chamar de você? Bom, a senhorita tem idade para ser formada, senhorita Harris – é Harris, não é? Ainda por cima em Matemática?


O que ele queria dizer era: “você me parece muito nova e ainda por cima muito arrumadinha para a função”, mas tropeçara numa das pontas do tapete antes que pudesse concluir o raciocínio e acabou esquecendo.

Bruce repassou o currículo de Moira para o professor, que leu atentamente cada vírgula – duas vezes, pelo tempo que demorou.


- Senhorita Harris, eu não sei se a senhorita estaria apta... Não me leve a mal... Mas mocinhas bonitas não consertam computadores.

- Posso provar que a “mocinha bonita” aqui consegue – Moira respondeu na mesma hora, e apontou para o computador ao lado de Bruce – Esta lata velha, por exemplo... Faz um tremendo barulho. E aposto que desliga de repente sem motivo.


Bruce e o professor se entreolharam com surpresa, o que confirmou a tese de Moira.



- Eu posso dar uma olhada.

- E a senhorita vai abrir isso com o quê? As mãos? – o professor parecia incerto, até que Moira tirou uma caixinha de metal de dentro da bolsa vermelha, contendo ferramentas em tamanho reduzido, próprias para a atividade de abrir HDs.

Em dez minutos ela já tinha desmontado e remontado o velho 486 da sala e apontava o “culpado” pelo superaquecimento com o cabo da chavinha de fenda.


- Viu? O ventilador da máquina estava emperrado. Com isso, o motor faz barulho mas não trabalha, a máquina fica quente e desliga por medida de segurança – e, depois de um instante, adicionou – Se não vão me dar o emprego, então eu vou cobrar quarenta libras pelo conserto.