Wednesday, May 31, 2006

Estranhos

Bruce encarou Moira, confuso, ponderando sobre o que ela acabara de dizer. Talvez. Mas, de modo repentino, tendo um raio iluminado sua consciência, balançou a cabeça em negação:

- Na verdade, o cachorro é apenas um vira-lata que o professor recolheu. Achei melhor deixar de sobreaviso. Não são todos que gostam de animais.

Ele encostou-se à mesa e recolheu um dos muitos papéis que ali empilhara.

- Veja só. Você trabalhava na IBM?

- Sim. Há um ano e meio.

Bruce sorriu.

- Posso ver. Era bom?

Moira hesitou. Os dois trocaram um olhar rápido e, ao que Bruce compreendeu, desconfortável.

- Eu gostava – ela disse, por fim.

Bruce assentiu. Ergueu a cabeça ao reconhecer passos familiares no corredor – suspirou, pesaroso.

- Certo, Moira Harris. Então nós só precisamos nos sentar e esperar o Prof. Wilcox. Eu não posso impedi-lo de vir, de qualquer modo.

Nem meio minuto passado, irrompeu pela porta Alphonsine Wilcox, majestoso. Vinha tagarelando sobre ações com um amigo imaginário, ou com alguém que abandonara na metade do caminho e do qual ainda não fora capaz de sentir falta. Sorriu quando deparou com Moira e Bruce. Era dono de olhinhos negros que irradiavam um brilho suspeito.

- Rose – disse, pousando uma das mãos sobre o ombro da moça. - Olá.

Bruce ficou pálido. Disse, entre os dentes:

- Moira Harris. A garota que respondeu ao seu anúncio. A única, por acaso.

Cinco por oito

Moira sentou-se na cadeira de tecido vermelho e gasto e bateu os olhos na sala. A mente matemática da garota observou que o local tinha cinco metros por oito (a não ser que as estantes da esquerda escondessem alguma sala secreta), com um tapete pretensamente oriental no chão, tremendamente gastos nos cantos. Nada ali parecia novo ou moderno, o que agradou Moira tremendamente.

Bruce sentou-se no canto da mesa de trabalho, afastando o teclado do computador para se acomodar. Ele parecia estranhamente constrangido, e ela sorriu ao perceber que ele não era o único nervoso no local.


- Você trabalha com o professor há muito tempo? - ela perguntou para quebrar o gelo.

- Quatro anos, mais ou menos.

- Entendo. Desculpe perguntar, mas preciso saber uma coisa...


Antes que ele pudesse responder, ela emendou:

- Por que você queria saber se eu não tenho problemas com cachorro? O professor é cego e precisa de um cão-guia, é isso?

Tuesday, May 30, 2006

Aquela que não é Elizabeth

Bruce tinha tanto afinco pela ordem que passava o tempo a adorá-la e esquecia-se, de fato, de ordenar o que deveria ser ordenado. Quando notou, depois de alguns segundos folheando as páginas de um trabalho, que alguém batia à sua porta, deu permissão para que a pessoa entrasse e estendeu uma xícara.

- Elizabeth, vou precisar de mais leite.

- Desculpe. Eu não sou...

Bruce, ao encarar Moira, ergueu-se de um salto, a ponto de assustá-la. Sentiu-se constrangido e com muita relutância devolveu a xícara à mesa.

- Não, eu que me desculpo. Eu... bem, é claro que você não é Elizabeth. Quero dizer, se fosse Elizabeth teria cinqüenta quilos a mais e uma voz que...

Ele fechou os olhos por um instante e fez uma pausa. Depois, estendeu a mão para cumprimentar Moira.

- Enfim. Você é a senhorita Harris, eu sou Bruce Glendoning, olá. Por favor, sente-se.

Ele notou que não havia cadeira. Deu a volta e trouxe aquela na qual estivera sentado.

Sala 215

Moira entrou no departamento de História olhando para os lados como o explorador que entra na floresta desconhecida. Nada mais assustador para alguém de Exatas do que a fauna de uma faculdade de Humanas - e ainda por cima História.

Olhava para os alunos com suas sacolas e suas roupas estranhas, cabelos desgrenhados e ar de feira hippie, e sentiu-se ainda mais fora do contexto em sua calça-de-compromisso-sério (o único par de calças pretas decentes que tinha) e sua blusa de gola alta, ou a bolsa vermelha (com um MP3 player com uma seleção de Kinks, Pete Townshend e alguma coisa dos Hollies) que carregava embaixo do braço, junto com o currículo.

Uma secretaria era o porto seguro, como todas as secretarias são. Perguntou onde poderia encontrar Bruce Glendoning e recebeu como resposta de uma senhora alta e gorda como um peru de feira agropecuária:

- O assistente do professor Wilcox? Na sala 215, no final do corredor.

E, num tom meio enigmático:

- Você não vai ter como errar.

Todas as mortes de Bruce

Na primeira noite que passou em seu apartamento, Bruce Glendoning sonhou que era devorado pela secretária-eletrônica. Ao amanhecer, ainda de pijamas e meias, começou a organizar a biblioteca, tarefa que, em cinco anos, jamais foi capaz de terminar. Quando sua mãe e o segundo marido, Rob, enfim mudaram-se para a casa que o próprio Rob vinha construindo, Bruce indagou se, por acaso, um extremo acaso, não haveria algum livro sobrando. Honoria mandou uma caixa de romances kitsch. Bruce conseguiu que ela atendesse o telefone três dias depois:

- Mãe, a senhora tem certeza de que mandou a caixa certa?

- Eu mesma organizei. E cuidado com o meu “Paixões Ao Vento de Abril”. É um exemplar de colecionador.

Bruce escondeu a caixa nas profundezas de um dos armários. Na noite seguinte, sonhou que o homem descamisado na capa de “Paixões Ao Vento de Abril” escapava do confinamento para se vingar. Os dois se enfrentavam em um duelo e Bruce recebia um tiro fatal no peito. O homem descamisado ria, zombava, tomava a mulher ruiva nos braços. Bruce só podia implorar para que Deus acabasse com tudo de uma vez.

Contou o sonho a Rose, que ficou surpresa com a existência da caixa.

- Ela ainda está aqui? – Rose perguntou, em um tom carregado de misticismo.

- Fisicamente, ah, está. Mas não a mostrei a ninguém. E nem mostrarei. Jamais – resoluto, Bruce engoliu um gole do chá; desprezava café, que parecia ser a bateria de Rose.

Ela sorriu e deu de ombros.

- Minha mãe também tinha uma coleção. Nunca soube o que foi feito daqueles livros. O que me lembra: Bruce, quando vai terminar de arrumar seu apartamento?

- Jamais.

Bruce e Rose viviam uma história que poderia ser explicada em uma nota de rodapé. Conheciam-se há um ano e ainda não tinham planos de morar juntos. Era um acidente inexplicável, como o Prof. Wilcox chamava. Rose, estilista em início de carreira, a cabeça habitada por tesouras e saias balonê. E Bruce, o estranho Bruce, que colecionava mapas e rejeitava tênis e calças jeans.

Tinham poucos dias da semana para se encontrar; geralmente o faziam em uma casa de chás perto de onde Rose morava. A atendente chamava Bruce de “Professor”. Bruce sabia que a atendente não o aprovava, do alto de sua autoridade.

- Você começa a questionar sua honra quando balconistas desconhecidos se dão o direito de lhe arranjar apelidos.

Rose deu de ombros.

- É humanamente inaceitável, você entende – Bruce continuou. - Entende?

- Eles só estão brincando. Talvez se você parecesse mais sociável...

- Mais sociável?

- Uma pessoa normal, eu quero dizer.

Rose recebeu os biscoitinhos que a garçonete trouxe. Comeu-os despreocupadamente, mas Bruce estava atento, o peso de seu olhar quase achatando-a na cadeira. Incapaz de ignorá-lo, Rose fez um gesto afetado com a mão.

- A culpa é do tal de Schopenhauer que você gosta de ler. É a minha opinião.

Bruce franziu o cenho, mortalmente ofendido. Naquela noite, sonhou que Schopenhauer escapava da estante e vinha matá-lo.

Um senhor que não sabia fazer contas

Edward Smith-Morris era um senhor educadíssimo e que adorava plantas, tanto que tinha uma loja de produtos para jardinagem na plácida cidade de Norwich, à leste da não tão plácida Londres. Casara-se em 1941 com Adelaide Jones, que freqüentava a mesma igreja que ele. Os dois tiveram uma filha, a quem chamaram de Stella, e que se casou em meados de 1978 com um professor de Matemática chamado Arthur Harris.

Como Stella e Arthur tinham morrido em um acidente de carro em 1983, Adelaide falecera em 1985 e os pais de Arthur nunca apareceram nem para dizer bom dia, então o único parente vivo de Moira era o senhor Smith-Morris, que telefonava todas as segundas e quintas à noite para a neta.

- Uma entrevista de emprego? Ora, isso é bom! E qual a vaga?

- Parece que precisam de alguém que entende de matemática e computação. O que vão fazer com isso no departamento de História de uma universidade, eu sei lá.

- Você vai descobrir. Pelo menos o salário é bom?

- Melhor que ficar consertando computadores, vovô.

- Você é quem sabe. Eu não entendo patavinas de computadores. E muito menos de matemática! Passou de dois dígitos, eu tenho que usar a calculadora. Eu só entendo de plantas. Já dá trabalho o suficiente. Falando nisso, não sei se lhe contei...


Moira encostou a cabeça na almofada e ficou ouvindo o avô discursar sobre seus problemas com gerânios e astromélias. Ele narrava como se fosse umapraga de pulgões fosse a invasão da Normandia - e ela adorava aquilo. Quem precisava de contos de fada para dormir?

Carta

“Você compreende, meu bom primo, que o assunto já foi discutido ad nauseam. E também compreende que, muito embora Jesus Cristo seja o anfitrião temporal número um, como parece ser a preferência de meus colegas teóricos, só uma pessoa no universo valeria a pena ser visitada: Marilyn Monroe.

A propósito, diga a Maggie que pendurei o desenho dela na geladeira. Muito bonitinho”.


(Trecho da carta do Prof. Alphonsine Wilcox a seu primo, George Wilcox, datada de 24 de julho de 1988)

Uma conversa telefônica

- Alô? Eu queria falar com Bruce Glendoning , por favor?

O apartamento era uma dessas latas de sardinha que se empilhavam ao redor da estação de Liverpool Street - apartamentos em que só um anão moraria com folga, isso se conseguisse conviver com a balbúrdia da estação de trem e de metrô, sempre apinhada de turistas e demais viajantes. Moira Harris adorava aquele lugar, tanto quanto adorava logaritmos.

Havia gosto pra tudo, afinal. Inclusive para o pôster do Einstein numa parede e dos Kinks na outra. E para o vaso de vidro vermelho que vivia caindo no chão e a chaleira com um apito em forma de abelha, e os livros empilhados embaixo da cama, porque não havia espaço o suficiente nas estantes.


- É a respeito do emprego... Meu nome é Harris, Moira Harris... Não, é "Moira". Isso... Sim, eu sou formada em Matemática... Universidade de East Anglia... Não, meu senhor, eu não sou de Londres, eu só moro aqui... Se eu gosto de cachorro?! Eu não tenho nada contra cachorros... Marcar entrevista? Está bem, amanhã não tem problema nenhum...


Anotou na agenda: "Entrevista de emprego - Universidade de Londres - 10:30 - Procurar Bruce Glendoning, departamento de História. Por que perguntou se eu gosto de cachorros?!"

Do início das inúmeras reclamações de Bruce Glendoning

Meu pai costumava dizer que existem somente duas maneiras de um homem evitar a loucura, sendo elas a) beber e b) beber mais um pouco. Quando ele morreu em decorrência de um coma alcoólico, eu decidi, e me agarrei ao ideal, que o caminho da loucura era o meu caminho. A decisão que tomei aos oito anos de idade pode explicar o que foi feito da minha vida profissional.

Hoje, quando cheguei, o cachorro estava em cima do sofá.

- Não é o cachorro que ficava revirando as latas de lixo? – perguntei. – O que ele está fazendo aqui?

O professor estava lavando as mãos e não ouviu, então fui obrigado a repetir. Ele saiu do banheiro parecendo contente, do modo particular que só uma pessoa insana é capaz de parecer.

- É, não é? – disse. – Ele é tão bonzinho. Não me mordeu. Graça, graça de cachorro. Paguei para que o Mike, Mike, o filho daquela senhora... Mike, pois então, desse banho nele. Não está bom? Não está?

- Desculpe, eu não entendi. Vamos ficar com o cachorro?

- Fahrenheit.

- O nome do cachorro é Fahrenheit?

- Bem, foi uma coisa do acaso. Eu estava arrumando alguns livros e ele... – e fez uma pausa. – Você está bem, Bruce?

- De certo modo. Eu estava atingindo o Nirvana. Mas continue, continue.

- Eu sei que você não tem lá grande afeição por bichos, mas não é mais agradável ter uma segunda companhia?

Fui obrigado a passar o resto do dia evitando deixar papéis soltos por aí. Em determinado momento, o professor resmungou sobre o infortúnio de ninguém haver respondido ao anúncio de emprego. Troquei um olhar de cumplicidade com o cachorro. Foi a única vez, e não tornará a acontecer de novo.

Da agenda de Moira Harris

Coisas para fazer: buscar as roupas na lavanderia / comprar caderno-canetas-post its/ buscar os meus sapatos no sapateiro / buscar o CD novo do Keane que eu encomendei / ligar pro tal Bruce Glendoning a respeito da entrevista de emprego.

Na TV, hoje: "Doctor Who", 21:00, BBC 2. "Labirinto" 22:30 na ITV1. Gravar desta vez.

Será que eu não estou um pouco grandinha pra ficar com medo do David Bowie como Jareth?

Copiado de um livro abandonado no metrô (estação de Waterloo, hoje à tarde):

What though the radiance
which was once so bright
Be now for ever
taken from my sight,
Though nothing can bring back the hour
Of splendour in the grass,
of glory in the flower,
We will grieve not, rather find
Strength in what remains behind;
In the primal sympathy
Which having been must ever be;
In the soothing thoughts that spring
Out of human suffering;
In the faith that looks through death,
In years that bring the philosophic mind.

Quem escreveu isso afinal?