Tuesday, September 19, 2006

Até que a morte os separe (gradativamente)

Bruce fechou o punho, desconcertado, agarrando apenas ar. Olhou para Moira, que parecia estarrecida.

- Ele estava falando do próprio casamento?

- Eu diria que sim.

- Wilcox foi interromper o próprio casamento e cometeu alguma burrice atroz que o levou gradativamente ao fim da vida?

Moira franziu a testa; gaguejou um pouco antes de responder.

- Aonde quer chegar, Bruce?

- A lugar nenhum – Bruce riu, apavorado. – Eu estou perdido e sem reação. Só aprecio a ironia de cada manhã.

Sentiu as pernas fraquejarem. Contava que Wilcox fizesse uma estupidez daquela grandeza, cedo ou tarde.

- O professor está morrendo – declarou, começando a suar frio.

- Precisamos voltar e avisá-lo.

Bruce assentiu. Não levariam tanto tempo para chegar até o escritório. Mexeu nos bolsos, mas então se lembrou de que não havia nenhuma chave do carro, porque não havia sequer um carro.

- Bruce, quando ele se casou?

Ele não respondeu. Virou-se para Moira, compreendendo que a nuvem da má sorte, pairando sobre sua cabeça, acabara de achar um lugar cômodo.

- Meu Deus. Vamos precisar voltar, não é?

Setenta e três

Moira e Bruce saíram do cinema andando muito próximos um do outro, às gargalhadas. A sessão fora interrompida uma vez, depois que o senhor de boina dormiu e começou a roncar horrivelmente na primeira fila, o que causou uma onda de risos e muita reclamação por parte de Bruce, que queria ver a cena da fonte sem a trilha sonora de alguém dormindo.

Ele ligou o celular. Sete mensagens de Rose, nenhuma de Wilcox.

- Eu acho que ele não sabe para que serve um telefone – Bruce deu de ombros.

- Bom, tanto melhor que ele não tenha ligado. Seria complicado achar uma desculpa.

- Ficar com medo do trabalho não é desculpa.

- Difícil de acreditar, quando você não lida com animais selvagens, terroristas ou crianças do primário...

- Você ainda vai se arrepender de dizer isso, mocinha.


A última frase viera distante, o que forçou Moira a voltar-se para trás.

Era Wilcox. Mas ao mesmo tempo, não era Wilcox. Era alguém parecido com ele, apoiado em uma bengala, o rosto amarelo e fraco, muito mais velho. Ainda vestia-se com apuro, mas o cabelo tinha há muito lhe abandonado e os olhos não tinham o mesmo brilho. Estava doente, francmanete em decadência, o corpo projetado para a frente como se tudo lhe doesse.

Bruce pensou em dizer que aquilo parecia um disfarce muito bom. Mas o modo como Wilcox olhava – com dor, com cansaço – era por demais genuíno.


- Professor! – Moira se assustara.

- Eu estou vindo de longe. De treze anos no futuro – a voz de Wilcox não saía da garganta, parecia perder-sen o caminho – E tenho muito pouco tempo, Moira, meu anjinho. Nos dois sentidos. Esse buraco temporal vai acabar em breve... E eu também.


Antes que qualquer um dos dois jovens respondesse, ele continuou.


- Eu estou vindo de novembro de 2019, querida. Daqui a um mês, no meu espaço-tempo, eu vou morrer... Por causa de um erro que eu cometi neste dia. Hoje. Enquanto vocês estavam no cinema, pondo em marcha o que vai ser o futuro de vocês dois juntos e mais não posso dizer, eu estava em West Rotherithe. Eu cometi um grande erro. E eu preciso que vocês me impeçam, porque esse erro vai me matar!



O Wilcox do futuro começou a tossir, e Bruce o amparou com cuidado. Parecia tão estranho que aquele homem fosse o mesmo professor elétrico e excêntrico para o qual trabalhava há quatro anos.


- E eu preciso impedir. Preciso impedir mas não alcanço...

- Para onde o senhor foi? – Bruce perguntou.


Wilcox continuou tossindo. Ele começara a desaparecer.


- Eu fui atrás de mim mesmo. Impedir eu mesmo de me casar com aquela...


No segundo seguinte, ele desaparecera, como uma miragem.

Friday, September 15, 2006

Anita, Anouk

Bruce e Moira sentaram-se em uma das fileiras do fundo. Além dos dois, um senhor de boina, um grupo de colegiais e duas turistas japonesas estavam também presentes na sessão de La Dolce vita.

Bruce se espreguiçou na poltrona. Tirou discretamente os sapatos, o que chamou a atenção de Moira.

- O quê? O que está fazendo? – ela perguntou.

- Apenas... relaxando. O seu sofá, eu devo dizer...

- Eu sei.

- Minhas costas estão doloridas.

- Você pagou nossa entrada. Vê se não dorme.

Bruce, assentindo levemente, sorriu para Anita Ekberg.

- Impossível.

Ele tirou o celular do bolso, lembrando-se de desligá-lo. A caixa postal informava que Rose havia deixado três recados. Deu uma risadinha amargurada.

- O que foi? – Moira olhou para ele.

- Rose. De novo. Talvez eu devesse aposentar o celular de uma vez. Ela e minha mãe são as únicas pessoas que realmente fazem questão de me ligar e, neste caso, não penso que seja boa coisa.

O senhor de boina virou-se para os dois e fez um gesto ríspido, pedindo silêncio.

- OK. Estou quieto, agora – Bruce se afundou na poltrona.

"Marcello!"

Moira terminou de arrumar o sofá-cama. Parecia um pouco mais pálida do que costume, contra a luz do sol que entrava pela janela. O barulho da estação de Liverpool Street já começava a ser ouvido.


- Bruce, eu acho que não vou trabalhar. Se eu tiver que ver o professor hoje...


Desviou o rosto, com uma careta. Ele entendia. Não seria nada fácil agüentar Wilcox se vangloriando de ter conseguido um feito inédito na História Mundial - e colocando o mundo em risco, ainda por cima. Não seria nada fácil. E ele ainda teria que aturar Rose o dia todo no telefone - porque ela ligaria de novo. E de novo.


- Bom, e o que você pretende fazer? Gazetear por aí e roubar doces de vendinhas?

- Na verdade, eu acho que vou me enfiar num cinema que eu conheço lá em Portobello e ficar vendo filmes velhos até pegar no sono.

- Filmes velhos - Bruce arqueou as sobrancelhas.


Moira pegou o casaco que estava pendurado atrás da porta. Não notara o súbito interesse de Bruce.


- Que tipo de filmes velhos?

- Fellini. Antonioni. Essas coisas - e, voltando-se para trás - Quer vir? Sem compromisso.

Sobre um celular

- Rose?

Houve silêncio do outro lado da linha – ainda que, ao fundo, uma mulher continuasse a matraquear.

- Bruce? É você?

Bruce olhou para o relógio de pulso. Marcava pouco mais de oito da manhã.

- Tudo indica que sim. Com quem está brigando?

- Annabeth – acrescentou, enfadada: - Minha colega de trabalho. Bruce, quem atendeu o celular?

Ele olhou para Moira, que sacudiu os ombros. Ela não tinha, tampouco, como se explicar.

- Minha colega de trabalho. Quanta coincidência.

- Por que sua colega de trabalho atendeu o seu celular?

- Porque... – ele hesitou. Sentou-se rapidamente, calçando os sapatos. – Porque eu estou no trabalho. E ela está no trabalho. Porque trabalhamos juntos.

- E você deixa seu celular largado por aí, para ser atendido por qualquer um?

- Não seja grosseira, Rose. Eu estava em outra sala, ela ouviu e atendeu.

- Seu celular.

- Meu celular.

- Então agora eu não preciso me preocupar mais com a sua falta de atenção. Se você estiver em um restaurante, o garçom certamente vai ter a bondade de atender. Ou em uma padaria, talvez o padeiro atenda. O leiteiro, a mulher que faz cobertura de rosquinhas.

- Rose. Eu não fiz de propósito. Não costumo largar as coisas por aí.

- Eu liguei cinco vezes para a sua casa, ontem e hoje. Se você tem um celular, supõe-se que seja para alguma coisa.

- Sim, sim, Rose – Bruce suspirou, zangado. – Me desculpe. Não precisa se preocupar com a integridade do meu celular. Vou ser mais atencioso a respeito das companhias com que ele anda e não vou deixar que chegue depois da meia-noite. Obrigado, até mais.

Desligou o aparelho antes mesmo que pudesse se dar conta do que fazia, ou que possíveis conseqüências precisaria sofrer. Levantou-se e checou os bolsos do casaco.

- Wilcox ligou? – perguntou.

- Não. Ainda não. Talvez esteja excitado demais com a máquina para se lembrar da nossa existência.

- É o que me preocupa – ele esfregou os olhos. Ainda parecia cansado. – Me desculpe você também. Por Rose. Ela é bastante... dramática.

Moira riu:

- Não se preocupe. Se servir de consolo, ela foi bastante monossilábica durante os poucos segundos em que trocamos palavras.

Sob o olhar de Einstein

Bruce acordou com o som de uma voz.

Foi quando percebeu que não estava em sua cama. A rigor, não estava nem na sua casa.

Olhou em volta, a cabeça vibrando como um tambor. Estava vestido, em cima de um sofá-cama vermelho. À esquerda, um pôster de Einstein observava o local com ar de quem pensa o que vai comer no almoço.

Alguém se sentou aos pés da cama improvisada, fazendo ranger as molas do colchão. Ele teve dificuldade em focalizar a imagem por alguns instantes.


- Bruce, é sua namorada no telefone.


Era Moira, com o celular de Bruce nas mãos – uma coisa ridiculamente antiquada, com os botões descascando e uma antena presa com fita adesiva. Ela estava pronta para sair para o trabalho, embora ainda estivesse um tanto abatida.


- Eu dormi aqui?

- Desmaiou seria o termo certo. Nem jantou. Eu não consegui te acordar.

- E a Rose está no telefone.

- Parece que sim.


Bruce colocou o aparelho na orelha, mas estava tão tonto que parecia ter se esquecido como se dizia “alô”. Do outro lado da linha, Rose falava - muito depressa e muito alto - alguma coisa que lhe parecia estupidamente incompreensivo.

Monday, September 11, 2006

Encontros e Desencontros (2003)

Bruce recostou-se em uma das cadeiras da cozinha, sentindo-se letárgico. Acompanhou os movimentos de Moira até que os olhos começaram a pesar.

- O que precisamos, você e eu, é de uma boa noite de sono. Talvez as viagens consumam energia demais.

Ele olhou para mesa; os cotovelos começaram a escorregar lentamente, enquanto Bruce lutava para se manter desperto. Ouvia os sons do fogão, o chiado da fritura. Líquido, copo, o vento da década de sessenta soprando, Wilcox rindo e o rangido dos trilhos do metrô.

Os trilhos fizeram com que arregalasse os olhos. Ergueu o rosto para Moira.

- Encontrar um buraco próximo? – ele quase gaguejou. – Voltar? Está pensando em voltar? Você realmente pensou nisso?

Moira deu de ombros, de costas para ele.

- Como eu poderia não pensar?

- Talvez... por causa de tudo que eu já disse? Você esteve lá.

- Exatamente.

- Não. Você esteve lá. Você viu o que a máquina pode fazer. É real. Imagine qualquer erro que possa parecer minimamente insignificante, no que se tornaria trinta anos depois. Ou cinqüenta, ou quarenta? Deus, onde é que Wilcox pode ter ido? Ele pode ter ido para qualquer lugar, em qualquer época.

- Você não entende, é óbvio.

Bruce se calou. Pensou no pai. Em como teria sido encontrá-lo em alguma época onde ele próprio não existisse. Não soube por que teria desejado tal encontro. Não soube por que Moira considerava uma nova oportunidade.

Os mortos estavam, afinal, mortos.

À beira do fogão




Moira assentiu, enquanto seguia para a cozinha. Tinha erguido o rosto, embora ainda estivesse um tanto abalado.


- Caixa de Pandora ou não, ela já está aberta. E agora eu vou ficar com esse fantasma na cabeça.


Parou por um minuto e abriu um sorriso cansado.


- Acabei de me lembrar de algo. Aquela abertura no tempo foi única, nunca mais retornará. O que é um alívio, de certa forma...

- Alívio? – Bruce não parecia entender.

- O professor não pode, ainda, escolher para onde ele vai. Ainda. Ele está ao sabor dos buracos que ele encontra no tempo. Isso significa que eu não posso voltar, também. A não ser que eu encontre um buraco próximo àquela data, mas eu estou com medo. Você tem razão. Arthur Harris é um nome comum, não? - e, numa pausa forçada - Você tem estômago para comer alguma coisa?


Bruce assentiu, sem discutir. Descobrira que cozinhar deixava Moira calma – enquanto ela se concentrava nos ingredientes e no fogão, ela não se preocupava com o resto. O cheiro da comida era sua própria máquina do tempo - o tempero era parecido com o que o pai de Bruce usava para cozinhar, geralmente escondido na cozinha, longe das garras de Honoria e sua mania de organização.

Ao contrário do que dissera, acreditava que aquele homem era o Arthur Harris certo - era bem parecido com o rapaz ossudo e cabeludo da foto que Moira tinha na carteira. Mas como se recusava a crer que tudo oque tinha passado era real, se recusava tambéma admitir que tinha visto, vivo e jovem, um homem que estava morto há mais de vinte anos.

Wednesday, September 06, 2006

After Party

Bruce aguardou. Como Moira não deu explicações maiores, ele sentou-se no sofá, ao lado dela. Tendo conseguido controlar a raiva, sentiu o choque tardio de toda a experiência. O corpo tremia de leve.

- Seu pai? – perguntou; a própria voz era um resquício.

Moira somente assentiu. Bruce, então, escorregou uma das mãos pela nuca, a palma fria como um cubo de gelo. Suspirou.

- Pode estar enganada. Pode estar.

- Tenho certeza de que era ele – Moira insistiu. Não chegou a encará-lo.

- Moira, você mal se lembra do seu pai. Poderia ser qualquer Fulano.

Bruce se arrependeu em seguida. Estava cansado demais para lembrar que devia medir as palavras em uma situação tão absurda.

- Quero dizer, não. É que... – ele fez uma pausa. – Moira... eu sinto muito. Não era o que eu queria dizer.

Moira pareceu magoada. Ficou de pé no mesmo instante, caminhando em direção da cozinha. Bruce cerrou os dentes, amaldiçoando a si mesmo, e seguiu a garota.

- Por favor.

Bruce se aproximou, tocando o ombro dela. Moira não reagiu – permaneceu como estava, encarando o chão.

- Talvez, sim. Talvez seja o seu pai, não digo que não acredito em você. Mas o que Wilcox construiu não deixa de ser uma caixa de Pandora.

Ovo de Serpente

A saída para o Hampton, via túnel secreto, demorava quarenta minutos. Wilcox tinha colocado um carro dentro do túnel (um Ford Anglia arrebentado, sem pára-choques ou vidros) para o transporte. Durante todo o trajeto, o professor matraqueou sem perceber que estava falando sozinho: Bruce estava nervoso demais para falar e Moira parecia em estado de choque.

Bruce se ofereceu para acompanhar a garota de volta até seu apartamento, em Liverpool Street. Por via das dúvidas, achou melhor não ir de metrô: não sabia quanto tempo ainda demoraria para deixar de ter medo de trens e vagões.

Talvez nunca.

Ele estranhara o tamanho do apartamento em Liverpool Street, o modo como Moira vivia. Era um lugar limpo e estranhamente impessoal: nenhuma foto de família, nenhum pedaço de história. Quem teria um retrato de Einstein na parede mas nenhuma foto dos pais? Ou então do avô, que tanto a adorava (e ela parecia amar)?

Moira sentou-se automaticamente no sofá e fechou os olhos. Estava ainda mais pálida, as mãos apertando algo invisível debaixo das palmas.


- Eu não sei se vou conseguir ir trabalhar amanhã - ela disse, com voz incerta - Acho que eu ajudei um maluco a chocar um ovo de serpente! Uma máquina daquela, nas mãos do Wilcox?

- Exatamente o que eu pensei - Bruce respondeu - Não me surpreenderia se amanhã a gente acordasse e visse que a Grã-Bretanha virou uma república ou algo pior.

- Aquele homem. Em Cambridge. O homem que entrou na loja...


Moira abriu os olhos novamente.


- Eu tenho que voltar ali. Eu tenho certeza que aquele era o meu pai.