Thursday, July 27, 2006

Nada a perder

Moira cruzou os braços, pensativa. De fato, ela tinha criado a máquina - teoricamente, conseguira provar a existência dos tempos paralelos. Mas nunca alguém conseguiria quebrar a barreira. Nunca.

Mas 'nunca' é uma palavra que Moira desconhecia. Todas as coisas que "nunca" poderiam acontecer de algum modo sempre acabavam acontecendo.


- Bruce, me espera lá fora. Eu falo com ele.

- Você acha que...

- Glendoning! - ela bufou - Vai antes que ele te agarre de novo. Deixa que eu falo - e, sussurrando - Confie em mim, cara.


Bruce saiu, levando Fahreinheit, contra a vontade, pela coleira. Moira voltou a encarar Wilcox de alto a baixo, como se estivesse lidando com um fantasma.


- Você acredita em mim, não acredita, Moira? - Wilcox baixara a guarda - Porque você me criou uma máquina defeituosoa. Eu nunca consigo voltar para o exato instante de onde eu saí. Não consigo voltar nem memso para o mesmo local!

- Eu tentei te avisar que tinha um defeito no GPS, mas você não me ouviu! - Moira bufou - E como assim, "voltar"? Você está delirando, professor. Eu lhe dei um aparelho, não uma máquina capaz de quebrar barreiras!

- Eu disse que eu posso oferecer uma prova.

- Qualquer coisa?

- Qualquer coisa.


Moira pegou o walkman e colocou os fones nos ouvidos de Wilcox. Apertou um botão e um trecho de uma canção pôde ser ouvida no modo randômico:

And I chanced upon a farmhouse
Where the woman took me in
She gave me food and wine
She gave me shelter from the wind
She delayed me from my regiment
And service of my king
Many years ago

- Você "volta" no tempo e diz esse trecho de música para o Bruce. Não importa o local - Moira disse, desligando o som - Eu não acredito muito em você, racionalmente falando.

- Não se trata de racionalidade, mulher. É algo que pode mudar toda a História! É a oitava maravilha do mundo! Você não precebe?

- O que eu percebo é um sujeito com o terno cheirando a lixo e cabelo desgrenhado. Pelo menos vá se arrumar para a viagem, professor. Se o senhor está dizendo a verdade...


O sangue de Moira gelou na mesma hora. As possibilidades daquele delírio eram inifintas. Voltar no tempo! Quantas coisas alguém com más intenções poderia fazer com aquela máquina?


- Eu estou esperando com o Bruce lá fora. Hora do show, Alphonsine Wilcox.

Tuesday, July 25, 2006

Em que o Prof. Wilcox pode, afinal, estar falando a verdade, e onde um desafio é sugerido

O que mais assustava Bruce não era a aparência quase maltrapilha do chefe, mas o olhar insano no rosto do mesmo.

- Preparai-vos, assistentes! Não podem imaginar o que aconteceu.

Bruce sacudiu a cabeça, desanimado. Estava perdendo o apetite.

- O que houve? – inquiriu; imediatamente pensou em sapos brotando das paredes do Parlamento, o monstro do Lago Ness sendo descoberto e um leprechaun bêbado seqüestrando a London Eye.

Wilcox, orgulhoso, raspou um pó avermelhado dos ombros. Cheirava à páprica.

- Fui capaz de realizar minha primeira experiência temporal! Agora mesmo, sob este chão em que estamos pisando! Cheire este tempero abençoado, esta dádiva de eras passadas.

Radiante, estendeu a mão para Bruce, que recuou, sentindo o pescoço latejar.

- Claro, professor. Outra hora, porém. Moira, vou pegar meu casaco. Vejo você lá fora.

O queixo de Wilcox tremulou. Num gesto relâmpago, agarrou os ombros de Moira, sacudindo a garota.

- Você acredita em mim, não acredita, Moira? Você construiu o aparelho!

- Professor, eu...

- Wilcox, largue a garota. Você vai matá-la.

Com docilidade, Wilcox se afastou. Tinha os dedos das mãos enrijecidos e um sorriso estático. A força que empregava nele era tanta que seus dentes pareciam a ponto de rachar.

- Vai ser muito interessante ouvir sua história, professor – Moira disse, recompondo-se. – Amanhã, no horário de tarbalho.

Wilcox deu um risada de desdém.

- Precisa de uma prova?

Thursday, July 20, 2006

No presente (ao mesmo tempo em que a cena anterior acontece)

- Bruce, você aceita um chocolate?


Moira tinha uma caixa de bombons em cima da mesa e parecia profundamente entediada naquela segunda-feira. Wilcox não aparecera na casa no Hampton e não deixara ordens para ela. Tentava preencher o tempo com alguma coisa - ler um livro, acessar à internet - mas só sentia vontade de dormir.

Bruce pegou um dos bombons. Ainda não tinha contado do estranho encontro na casa de Sandringhan - em parte por causa do choque do garçom que na verdade era o Vincent Price. Olhando bem para ela, podia ver alguma semelhança com o tal Edward Morris - a testa, as mãos ossudas. Mas os olhos eram diferentes. Edward tinha olhos verdes e Moira tinha olhos castanhos escuros, quase pretos.


- Você tem uma foto dos seus pais? Só de curiosidade.


Moira pegou a carteira na bolsa vermelha, e passou a foto que sempre carregava consigo - seus pais posando próximos à Torre de Londres. Bruce sorriu quando viu a imagem. Edward estava certo - ela se parecia muito com a mãe. Mas o olhar inquisidor era do tal Arthur Harris, dono da "mente muito analítica" que tanto espantava Edward Morris.


- Você é bem parecida com a sua mãe.

- As pessoas costumam dizer isso - ela sorriu, guardando a foto na carteira.

- Isso lhe incomoda?

- Se ela estivesse viva, talvez me incomodasse. Minha adolescência não teria sido mole. Ela era bem brava, segundo me diziam.

- Adolescência não existe.

- A minha pelo menos não existiu mesmo - Moira riu - Enquanto todas as meninas gritavam pelo Take That na televisão, eu montava meu primeiro computador. Eu perdi minha vida.


Bruce deu risada, encasrando Moira com um sorriso meio perdido.


- Escute, o Wilcox não vem mesmo hoje.

- Assim me parece.

- Será que a gente pode ir no tal restaurante no porão jantar? Sem compromisso - ele imitou a voz de Moira, o que arrancou uma risada da garota.

- Pobre do Nicola, tendo a gente como convidado na cozinha de novo...


A frase foi interrompida pelos latidos de Fahrenheit, e a chegada de um Wilcox esfarrapado e cheirando mal. Quem visse acreditaria que ele tinha aterrisado numa lata de lixo ou qualquer coisa do gênero.

Tuesday, July 18, 2006

No passado

O pequeno Alphonsine Wilcox tinha o queixo do pai e os cabelos da mãe. Gostava de mexer em criaturas gosmentas e de realizar experiências com sabão e vinagre.

- Hoje é a coroação da Princesa Elizabeth – informou o garoto, o peito inflado de orgulho. Era baixo para a idade.

O outro Wilcox sorriu. Aquele Wilcox já não tinha dentes bonitos e nem um fio de cabelo loiro no topo da cabeça. Tomou notas em um bloquinho de mão. Seu comportamento fascinava o mais novo.

- O senhor é meu tio ou alguma coisa? – o Wilcox do passado perguntou. – Mamãe sempre fala de um irmão que foi lutar na Guerra.

- Não, não. É diferente. Quero dizer, embora partilhemos a mesma carga genética – a exata carga genética, na verdade – e aqui esteja eu, aos sessenta e quatro anos, as coisas ficariam melhores se você me chamasse de vovô. Mas é só uma divagação.

- O quê, o quê?

- Ah! Eu me lembro dos seus sapatos. Sapatos bonitinhos, meus prediletos.

O pequeno Wilcox olhou para os próprios pés. Os sapatos escuros estavam sujos de terra, esmagando minhoquinhas e caramujos. Ele estava vestido com toda pompa necessária para um dia de coroação.

- Oh, mamãe vai ficar zangada.

O Wilcox adulto estremeceu.

- Mamãe. Vai, vai sim. Eu também me lembro.

Uma das empregadas da casa começou a chamar o nome de Alphonsine, que ecoou pelo campo. O garoto se assustou, agachou e recolheu suas ferramentas de trabalho.

- Preciso ir. É a Emma.

- Emma? Emma, cara de rato?

- É, ela tem mesmo. Vou ver o senhor de novo, vovô?

- Daqui a cinqüenta anos, mais ou menos.

- Quanto tempo!

- Você vai viver, meu pequerrucho, não se preocupe.

O pequeno Wilcox acenou enquanto corria para casa. Não tinha dotes atléticos, via-se de longe. O Prof. Wilcox não se lamentou. Sabia que aquela inaptidão quanto às atividades físicas o levaria, eventualmente, ao tapete da biblioteca do pai, onde enfim desenvolveria sua maior paixão. Marilyn Monroe.

Um Acidente (Tempo Presente, Tempo Pretérito)

Edward sempre lembrava da cena. Era dezembro, estava frio e as estradas estavam perigosas por causa da neve. Arthur estava no carro, buzinando insistentemente.


- Eu volto na quinta. Você tem certeza que consegue tomar conta da Moira direito, pai?


Stella e seu cabelo liso, seu suéter verde, seu eterno ar de preocupação. Stella que se chamava assim por causa de uma canção, Stella by Starlight. Era a canção favorita de Adelaide (se fosse um menino, Edward ia batizá-lo como George).

Stella batendo os pés no assoalho, irritada com a buzina do lado de fora, os lábios finos se contorcendo numa careta chateada.


- Arthur vai me enlouquecer, pai. Por que ele tem que ser tão apressado?


Stella saindo pela porta, jogando um beijo no ar frio, entrando no carro, partindo.

Moira, dormindo em um cesto, a imagem da paz e da calma. E dali a três horas o policial aparecera naquela mesma soleira, “o senhor é o pai de Stella Harris?”, Adelaide desmaiando, toda a tragédia esperada num acidente como aquele.

Edward passara três dias sem dormir. O que fazer com Moira? Os avós paternos tinham deserdado Arthur, a menina não tinha mais ninguém. Então ela ficara ali. Crescera ali. Parecia muito com Stella, mas tinha a mente – e os olhos – de Arthur Harris. Era esperta.

Sentado em seu sofá preferido, após a festa, Edward Morris pensava em Bruce e Moira e nas estranhas coincidências que entremeavam a vida deles. Moira não perguntava nunca sobre os pais. O “tempo pretérito”, como ela dizia, lhe dava medo. Nunca lera os diários da mãe, nunca se interessara pelos livros do pai. Como crescera num vácuo temporal, em que ‘pai’ e ‘mãe’ não eram representados por ninguém e 'passado' significava 'dor', ela se isolara no presente.

Por algum motivo que não sabia compreender, Edward sentia-se estranhamente incomodado pelo fato de Moira trabalhar com Bruce. Talvez por ter conhecido o pai de Bruce, uma alma inteligente presa num corpo que só funcionava com álcool – quantidades cada vez mais gritantes de álcool.

Temeu por um instante que o passado se repetisse como maldição, mas caíra no sono antes de desenvolver a tese por completo. Bruce parecia perfeitamente normal, para as condições onde vivia. Talvez não fosse o caso de esperar uma repetição de histórias.

House on Haunted Hill

- E Moira, sua única neta, trabalha para o Prof. Wilcox? – Bruce perguntou, embora tivesse certeza de qual seria a resposta.

Edward pareceu surpreso.

- Wilcox – murmurou. – Acho que é mesmo o nome dele. Como sabia?

Bruce sorriu. Aceitou o copo de conhaque que um garçom lhe ofereceu depois de insistência louvável. Quase sofreu uma parada cardíaca ao reparar que o garçom era Vincent Price.

- Acontece que - tentou voltar sua atenção a Edward – Acontece que, uma das infelicidades da vida, ele também é meu chefe. Mãe, aquele garçom não se parece com...

Honoria deu uma risada, cortando o pensamento do filho.

- Bruce, mas que coincidência! Quem diria, Edward, naquela imensidão que é Londres, sua neta e meu filho trabalhando juntos? E sem a menor idéia de que já se conhecem!

Bruce quase engasgou. Limpou o canto da boca com a ponta da manga.

- Desculpe. “Se conhecem”?

- É claro que você não lembra. Foi antes de Rob. Antes do seu pai... – Honoria fez uma pausa. Finalizou a frase com um gesto de mão e prosseguiu. – Bem, foi em uma festa. Como era o nome daquela senhora? Howard? Olívia Howard? Deus a abençoe, já morreu também.

- Seria mais um daqueles pedaços da minha vida que eu apaguei?

- Não seja tão duro consigo mesmo, você tinha sete anos. E Moira ainda era muito pequena, não saía do colo da mãe.

- Moira tinha dois anos – Edward acrescentou. – Eu me lembro da festa.

Bruce assentiu, vagamente perturbado.

- Isso é... com certeza...

- Uma enorme coincidência.

- E o tipo de informação que meu chefe jamais vai poder receber.

- Pelo menos você não vai ficar tão sozinho naquela cidade. Meu Deus, Edward!

Tanto Bruce quanto Edward se assustaram. Honoria não percebeu; a vida ganhara um novo sentido.

- Falando em Olívia Howard, tem uma pessoa que você precisa conhecer. Venha comigo, por favor – e voltou-se para o filho. – Bruce, você vai ficar por aí, não vai?

- Claro. Como uma rocha.

- Ótimo. E não se esqueça de procurar Rob.

Bruce não procurou Rob, ainda que quisesse. A presença fantasmagórica de Vincent Price ameaçando cruzar seu caminho, ele não pretendia ressuscitar outros traumas de infância.

Com a maioria dos convidados nos jardins, a casa estava quase vazia. Na sala, um grupinho de meninos havia descoberto os jogos de tabuleiro de Finnegan. O próprio Finnegan não estava entre eles. Bruce o encontrou no quarto, entretido com o vídeo-game.

- Ah, oi. Como é que está a festa? – Finnegan perguntou, os olhos grudados na tela.

Bruce sentou-se na cama, ouvindo-a ranger. Puxou a manga do paletó e consultou o relógio. Faltava pouco para a meia-noite.

- Vai bem. Como uma festa deve ser, acho. Quase meia-noite... Deus.

Finnegan soltou um muxoxo.

- Veio muita gente?

- Bastante.

- Excelente.

- Talvez não seja a melhor das notícias, mas vi, por acaso, algumas crianças acabando com os seus jogos de Dungeons & Dragons.

- Não tem problema. Só não quero que subam até aqui.

Bruce riu; tirou os sapatos e se deitou na cama. As revistinhas de Finnegan estavam largadas no chão. Ele recolheu (com cautela) aquela que quase o matara do coração durante a viagem de ônibus.

- Ei, você ainda trabalha para o esquisitão? – Finnegan perguntou de modo repentino.

Bruce baixou a revista. Finnegan e Wilcox haviam se encontrado uma única vez, ocasião em que o professor gargalhara por quinze minutos seguidos antes de admitir algum parentesco entre os dois. Tendo se convencido, prosseguiu com um comportamento ainda mais anormal: endereçou um questionário frívolo e gigantesco ao garoto. Finnegan, então com quinze anos, reportou-o quando voltou a ficar a sós com o irmão.

- Ele me perguntou se você prefere praia ou montanha. Molho inglês ou molho branco.

- Que diabos?

- Ele também quis saber se você come espaguete com a ajuda de uma faca ou de uma colher.

Embora Wilcox não tivesse voltado a vê-lo, sempre recordava Finnegan como um amigo querido. Chamava-o de proto-Bruce.

- Ainda trabalho, sim.

- O que você faz para ele?

- Mapas. E ele está trabalhando na teoria de viagem temporal.

Finnigan largou o console do vídeo-game. Pareceu interessado.

- Como é?

- Viagem temporal. Máquina do tempo.

- Sim, eu ouvi. Mas não de verdade, certo?

- Não de verdade?

- Não como uma máquina do tempo que... realmente, realmente volte no tempo, não? Mas como uma... teoria?

- É, como uma teoria. Livros e cálculos. E também há uma garota que conserta computadores.

A lembrança de Moira fez com que Bruce se esquecesse, por um momento, do professor. Colocou a revistinha aberta sobre o peito, desistindo de tentar levar adiante a leitura.

- Finn...

- O quê?

- Você conhece aquele amigo da mamãe? Edward Morris?

- Edward Morris?

Finnegan pressionava com tanta força os botões do controle que Bruce não deu uma expectativa de vida maior do que três meses para o aparelho inteiro.

- Tempo. Isso é Mario Kart?

Finnegan mordeu os lábios:

- É claro que é Mario Kart. Só falta um circuito.

- Eu tive um Mario Kart. Céus, que péssimo jogador eu era. Enfim, Edward Morris.

- É um senhor, não é? – Finnegan perguntou. – Um floricultor.

- Jardineiro.

- É, eu conheço.

- Já viu a neta dele por aqui?

- Não. Não sabia que ele tinha uma. Por quê?

- Por nada – Bruce suspirou e fechou os olhos.

Cochilou ao som de musiquinhas temáticas e dos gemidos raivosos de Finnegan. Sonhou com um homenzinho bigodudo e de macacão vermelho que lhe explicava a questão por trás das experiências de Wilcox.

- Como pode ver, Prof. Glendoning, uma vez que vocês encontraram a fenda, a partir de agora é alto-e-avante e alegria e alegria de tão simples.

- Pensei que fosse a parte complicada.

Bruce queria perguntar por que estava usando um chapéu com orelhas de burro, mas não pareceu apropriado interromper o homenzinho.

- É claro que não. Não para uma mente genial como a do seu chefe. O senhor vê, a carga exata de propulsão energética pode lançar o condutível – a máquina do tempo, neste caso o potinho de iogurte no qual todos vocês vão viajar – através de finas camadas temporais que separam os eventos da nossa época dos do Woodstock.

- Já ouvi isso antes. Por que você fala como o meu professor de Estudos Sociais?

- Não faço a menor idéia. Quer provar um pouco de torta?

- Então eu posso estar em Londres e de repente ser arremessado para Hong Kong?

O homenzinho franziu o cenho, decepcionado.

- A posição geográfica ainda é uma questão discutível.

- Então quer dizer que posso ser arremessado ao mar aberto?

- Sim, mas eu não aconselharia. Muitas criaturas moram por lá. E o Kraken, que terror seria.

- Bruce? – alguém o sacudiu por um ombro.

Bruce despertou, assustado, dando de cara com Rob. O quarto estava escuro, o homenzinho de macacão vermelho havia desaparecido. A televisão e o vídeo-game estavam desligados. Não havia sinal de Finnegan.

- Oi – Bruce se levantou, esfregando os olhos. Olhou em volta. – Oi, Rob. Feliz aniversário. Que horas são?

- Quase uma da manhã.

Bruce deu uma risada amargurada. Calçou os sapatos.

- Desculpe. Eu acho que desmaiei.

- Tudo bem. Alguns convidados já se retiraram, mas sobrou bastante gente.

- Vincent Price ainda está por aí?

- Vincent Price?

Rob O’Hara era um homem baixo (não de verdade; mas era a impressão que passava estando perto de Bruce), moreno e de traços irlandeses, tão obcecado pela época Georgiana que não poucas vezes Bruce ponderou se o padrasto, ao acaso, não havia nascido no século errado. Parecia-se muito com Finnegan, cuja única coisa herdada de Honoria eram suas mãos de pianista.

Os dois desceram até a sala, Bruce sonolento e tropeçando. Finnegan estava arrumando os jogos que haviam sido vandalizados pelas crianças. Não parecia no melhor dos humores.

- Bruce! – Honoria caminhou na direção do filho mais velho. Tinha aquela expressão da época em que o repreendia por comer de boca aberta ou por não cumprimentar as visitas. – O que houve com você?

- Por onde começar?

- Tantas pessoas querendo vê-lo! Edward Morris queria se despedir!

- As pessoas vão encontrar um modo de perdoar a minha ausência. E se a Moira que trabalha comigo é mesmo a Moira dele, vou acabar encontrando-o, por aí. Soluções simples para problemas catastróficos.

Honoria ergueu uma sobrancelha cheia de incredulidade.

- Se diz.

Afastou-se para cuidar dos convidados restantes. Vendo-se livre, Bruce acomodou-se em um dos sofás, assistindo o trabalho minucioso de Finnegan.

- Mais conhaque, senhor? – um braço lânguido e metido em uma manga negra esticou-se para exibir a bandeja.

Bruce arregalou os olhos.

Monday, July 03, 2006

O mundo é pequeno demais

Edward sorriu calmamente, enquanto afagava a mão de Honoria em seu ombro. A idade tinha lhe caído como um manto, não como um fardo - ele tinha a cabeça erguida e sorria sempre, mantendo um bom humor que parecia inalterável. Não parecia um velho que só se quixava da vida e da artrose (embora esta última fosse bem visível nos nós dos dedos). De onde o tal Edward conhecia o pai de Bruce parecia óbvio, bastava ver as roupas do visitante: simples, mas bem cuidadas. Os dois provavelmente se conheciam do The Trooper, o pub local.


- Não se preocupe, Honoria querida. Você sabe que eu sou especialista nisso.


E para Bruce, com ar maroto:


- Minha neta faz a mesma coisa quando está nervosa. Uma pena que ela não pôde vir me visitar este fim de semana. O trabalho anda cansando a coitada.

- Sua neta mora na cidade? - Bruce perguntou só para ser educado.

- Não. Londres. Conserta computadores. Trabalho pesado.


Ah, não. O mundo não é tão pequeno assim. Existem muitas garotas que trabalham com computação, Bruce pensou enquanto afundava na cadeira. OK, só porque eu não conheço nenhuma além de Moira Harris não significa que não existam outras garotas que consertem computadores em Londres.


- É uma profissão incomum, pruma menina.

- Eu também acho, mas ela puxou ao pai. O Arthur, Deus o tenha, consertava qualquer coisa que lhe pusessem na frente. Mente muito analítica - Edward disse, mantendo o sorriso no rosto - Às vezes eu me pergunto o que é que minha filha viu nele! Ela se formou em História, afinal.

- Os opostos se atraem.

- É um clichê e, como todo clichê, tem um fundo de verdade. Minha neta é parecida com a mãe fisicamente, o rosto em especial, mas a mente é Arthur Harris do começo ao fim. Imagine você que ela aprendeu a programar computadores com doze anos. Mas, Deus do céu, alguém me impeça de soar como um velho coruja e gagá! - Edward deu uma risadinha.

- Seus outros netos vão ficar com inveja - Bruce tentou ser engraçado.


Edward deu de ombros quanto à pretensa piada.


- Quanto a isso, nada a temer, Bruce. Moira é minha única neta, filha única de filhos únicos.