Thursday, August 31, 2006

Mais ameaças

Bruce, num piscar de olhos, descobriu-se de volta ao vagão; sentado e com sono. Mais um passageiro ordinário de qualquer manhã londrina do que um viajante do tempo.

Olhou para o lado: Moira estava deitada, desperta, parecendo confusa demais para reagir. O professor Wilcox, em contrapartida, foliava pelo trem sem nenhum pudor. Bruce tentou dizer alguma coisa, mas só pôde produzir um grunhido esquisito.

- Como foi? O que acharam? – Wilcox havia irrompido da cabine de máquinas com o peito estufado. O herói da nação. – Gostaram do nosso passeio, eh?

Bagunçou os cabelos de Bruce, que, apoiando-se mal e mal, pôs-se de pé. O professor ainda ergueu um dedinho indicador quando o assistente rumou para fora do trem, cambaleante, a saída clássica de quem só retornaria com uma serra elétrica e sede de vingança, mas não disse nada que pudesse impedi-lo.

- Ora, ora. Estamos com humores alterados hoje, não? – Wilcox indagou consigo mesmo. Tendo notado Moira, aproximou-se dela e se ajoelhou. – Alô, Moira. Está tudo bem aí? – recebeu-a com um sorriso amarelado.

Moira ainda levou algum tempo para fixar os olhos no professor. Parecia ter se perdido em um longo raciocínio.

- Nós realmente estávamos lá – disse, a voz baixa como um sussurro.

- É claro que sim! Você e Bruce são um pouco céticos demais. Bem, Bruce é, na verdade... ah, esqueça. Você precisa de ajuda para se levantar?

- Não, eu estou bem.

- A primeira vez é sempre estranha. Vai melhorar com o tempo – Wilcox, de repente, franziu o cenho. – Está ouvindo isso? Um pouco de eco?

Moira, de pouca vontade, levantou-se.

- Parece que estão batendo alguma coisa em – Wilcox começou, mas, de repente, se tornou pálido. – Bruce! – ele ganiu, e saiu do trem em disparada.

No final da estação, Bruce, com o que havia sobrado de um velho assento de trem, tentava abrir a passagem que levava ao galpão de Wilcox. O professor correu até ele, horrorizado.

- Bruce, o que está fazendo?!

- O que pareço estar fazendo? – Bruce tomou fôlego. Colocou o assento no chão. – Vou precisar desenhar?

- Você podia ter sido educado e... e pedido! Agora, seja um bom assistente. Não faça nada que eu não faria.

- Se não abrir, eu mesmo abro, mesmo que leve o resto do dia!

- Ainda sou seu superior, Bruce Glendoning!

- Talvez. Mas eu sou o homem com o assento.

Wilcox mordeu os lábios. Ele pescou um cordãozinho que mantinha em volta do pescoço, um molho de chaves que escondia sob a roupa.

- Ótimo – declarou, enfezado. – Chegue para lá.

Thursday, August 24, 2006

Um breve instante no tempo

Os cartazes indicavam os partidos para a eleição geral, que estava marcada para dali a duas semanas. O sorriso triste de Harold Macmillian, o líder do Partido Trabalhista, aparecia de vez em quando nos muros. Algumas pichações também corriam as paredes – nomes de partidos esquisitos apareciam em quase todos os cantos.


- Decididamente, estamos em 1974 – Wilcox disse em voz alta – Ou isso ou o tempo foi misericordioso com esses cartazes...


Bruce não parecia convencido, mas uma banca de jornal no caminho lhe forçou a ver a realidade: as manchetes anunciavam o fim da ditadura de Salazar em Portugal, os prognósticos para a eleição e a parada de sucessos: Suzi Quatro estava em primeiro lugar com “Devil Gate Drive”. Os três olhavam as notícias em silêncio, como se estivessem diante dos resquícios de outra civilização.

Um homem de longos cabelos escuros entrou na banca de jornal, as mãos escondidas dentro dos bolsos. Ele vestia um longo casaco preto, que parecia contrastar com seu rosto pálido e o corpo ossudo, magro como um palito.

- Matt! Chegou aí as revistas que eu encomendei?

- Nada ainda, sr. Harris.

- Por que é que você me chama de senhor? A gente tem a mesma idade! – o homem no casaco preto sorriu.

- Porque você é cliente, Arthur, e os clientes a gente chama de ‘senhor’.


Moira parou de andar de repente, como se tivesse tomado um soco. Arthur Harris?

E, no instante seguinte, tudo ficou escuro mais uma vez.

Ela abriu os olhos e viu somente o teto do trem.

Chegada

Bruce sentia as mãos arderem e o crânio latejar, dolorido. O professor Wilcox se aproximou, perfeitamente recomposto. Não tocou no assistente, ou fez menção de ajudá-lo. Agia como se houvesse acabado de encontrar um animalzinho atropelado.

- Alô, Bruce. Tudo bem aí em baixo?

- Me refazendo aos poucos – Bruce murmurou, a sensibilidade voltando devagar ao resto do corpo; quando achou que este já lhe pertencia mais uma vez, ergueu-se, massageando a testa. – Onde estamos?

- Em 1974 – Wilcox informou, seguindo com um longo assobio. – Cambridge, um dos meus lugares preferidos.

Bruce deu um riso contido. Caminhou até Moira, embora suas pernas ainda teimassem em não responder.

- Você está... – ele começou, encarando a garota. – Apesar de ter enfrentado uma... seja lá o que foi... está bem?

Moira pareceu achá-lo engraçado.

- Estou. Você é que não parece muito bem.

Bruce assentiu.

- Vai passar.

Ele se virou; um pé tropeçou no outro e seguiu-se uma queda inaudível, apenas curiosa. Bruce tornou a se levantar no mesmo instante.

- Estou bem. Estou bem.

- Estão prontos para um tour, assistentes?

Wilcox tomou um dos braços de Moira, como um cavalheiro.

- Não estamos em 1974 – Bruce afirmou, convicto.

- Ah, estamos sim, Bruce. Totalmente.

Instante Zero

Do lado de dentro, o trem parecia como qualquer outro trem de metrô em Londres: pequeno, com assentos estofados de um tom esquisito de verde. Só que a cabine de comando estava aberta e cheia de computadores. Era o brinquedo de Alphonsine Wilcox - a sua máquina do tempo.

O professor sentou-se orgulhosamente à frente dos comandos e ligou as engrenagens. Um ruído branco tomou conta do trem. Moira acomodou-se como pôde em um dos bancos, mantendo Bruce próximo. Ele estava verde outra vez.


- Le temps détruit tout, le temps reconstruit tout - Moira suspirou para si mesma.


Uma alavanca fora puxada e o trem se pôs em movimento, a princípio muito lentamente, dando voltas pelos trilhos circulares. À medida que ia pegando velocidade, Bruce ia ficando cada vez mais verde, afundando no banco do trem. Três minutos de “viagem” e o trem já estava a quase oitenta por hora, o que era uma velocidade temerária para um circuito que tinha, por baixo, sessenta anos. As luzes tremiam, as cadeiras balançavam, Bruce caiu no corredor.


- Wilcox! A quantos por hora esse troço chega? – Moira gritou, se segurando para não cair junto.

- Como? - o professor não escuatava nada por causa do barulho.

- A velocidade! Quanto é a velocidade?!

- Ah! Teoricamente, este trem chega a duzentos quilômetros por hora.

- Essa porcaria vai desmontar se chegar perto disso!


Foi quando as luzes do trem se apagaram e uma sensação de falta de gravidade tomou conta dos ocupantes. Pareceu durar uma eternidade – a exclusão da consciência de lugar, de tempo, de espaço, um zumbido muito fino cantando dentro da caixa craniana.

E de repente, o chão duro, a tontura, o ar que não chegava aos pulmões. Moira tateou o chão, a cabeça explodindo, o sangue sem saber se corria para o crânio ferido ou para as pernas, que ela jurava não conseguir sentir.

Um vento gelado, cortante, lhe atiçou os sentidos. Estava tocando uma calçada - pedras irregulares, arredondadas pelo tempo.


- Fez boa viagem, Moira? - Wilcox já estava de pé, dando pequenos pulinhos - Você vai aprender a aterrisar com o tempo... Espero que o Bruce aprenda. Eu acho que ele desmaiou, pobre coitado.

Friday, August 18, 2006

I do

Wilcox pareceu tomar a recusa de Bruce como uma ofensa pessoal. Tirou um espelhinho quebrado de uma das muitas gavetas e começou a arrumar os cabelos com a ajuda de um pente amarelo, vários dentes faltando.

- Bruce, sua covardia me espanta. Não fazia parte do seu currículo.

- Não é covardia, é bom senso.

- Não tem a mínima curiosidade de saber como era o mundo antes do seu nascimento?

- Tenho. É claro que tenho – suspirou. – Foi por isso que eu estudei História – Bruce se levantou, ainda parecendo tonto. – Mas livros são seguros. Você não muda o destino da humanidade abrindo e fechando livros, ou escrevendo teses. Bom, talvez sim. De uma forma mais poética.

Ele se aproximou do trem e tocou a face metálica. Deu duas batidas leves, com os nós dos dedos. O cabelo de Wilcox, recém-assentado, ficou em pé mais uma vez.

- Não faça isso! – o professor sibilou, como se qualquer som mais alto pudesse pulverizar as máquinas.

- Espere até eu conseguir um martelo.

- Você vai, Bruce? – Moira perguntou.

Bruce olhou para ela, desfeito de todas as esperanças, e deu de ombros.

- Alguém vai precisar vigiar você dois.

Algumas explicações de ordem técnica e uma recusa

Moira prestava atenção nos computadores, pensando em silêncio. Olhou em volta, tentando encontrar uma resposta para as questões propostas, quase ao mesmo tempo, por Wilcox e Bruce.


- Bruce, isso viaja no tempo porque é só um acelerador. Para quebrar a barreira do tempo, é preciso velocidade. Lembra que eu te disse que ele precisaria arranjar um jeito de atravessar? Então... É isso... É isso. O trem acelera, e a pessoa que está dentro é projetada para dentro da barreira de tempo. Quando o trem passar de novo pelo mesmo ponto, provavelmente a pessoa será impelida a retornar.

- Mesmo sem o trem na volta?

- Provavelmente. Wilcox, quantos quilômetros tem essa linha?

- Cinco. É uma linha circular. Praticamente um trenzinho particular.

- Faz bem o seu estilo.

- Ora, obrigado – o professor pareceu genuinamente feliz com o elogio.




Moira se aproximou dos computadores. O professor na mesma hora correu assustado, como se a garota fosse um ogro pronto para matar seu cachorrinho de estimação. Ela olhou feio – por um minuto, Bruce achou que ela tinha até rosnado, mas devia ser só ilusão sonora. Afinal, Moira seria incapaz de fazer alguma coisa.

Se bem que há alguns meses, Wilcox parecia igualmente inofensivo. Bruce voltou a encostar-se à pilastra, quase desmaiando.

Enquanto isso, Moira se inclinou para o GPS, e começou a apertar botões com calma. Parecia saber o que estava fazendo, mas Wilcox ficara cada vez mais branco e assustado. O computador principal apontou uma latitude e longitude: 51°45′07″N, 1°15′28″W. Cambridge. O programa indicava que a barreira de tempo era de trinta e dois anos.



- Opa. Temos uma janela de espaço-tempo aqui...

- Moira, meu anjinho, você ainda não solucionou meu problema do lago – Wilcox estava quase soluçando.

- Professor, o senhor sabe que o tempo não é uma entidade estática. Muito provavelmente, esses sumiços são quando você “tropeça” num buraco do tempo passado. É o mesmo problema quanto a chegar no mesmo ponto de onde você saiu – o tempo continua se mexendo, é difícil de mirar!

- E eu continuo existindo?

- Se o buraco não for grande o suficiente, sim. Você disse que dura somente alguns segundos.

- E se o buraco for grande o suficiente?

- Eu não sei... Eu nunca viajei nesse troço!

- Então, vamos para essa falha que você achou. Tenho certeza que você se divertirá muito.


Bruce ficou mais pálido do que antes.


- Eu não vou subir nesse trem!

Wednesday, August 16, 2006

Saltos

Moira olhou para Bruce. Ele tampouco havia notado que tivera uma das mãos confiscadas; seu rosto ficava cada vez mais verde, e ostentava a expressão de quem poderia colocar o próprio estômago para fora.

- É um trem – Bruce disse, abobalhado, depois de algum tempo.

- Que bom que você notou.

Wilcox vestiu um par de luvas de látex e, com muita gentileza, ligou as máquinas. Houve um estampido breve, regurgitado de algum dos computadores, e então toda a estrutura de trilhos rangeu horrivelmente. O professor parecia satisfeito como nunca. Sorrindo, ele apontava dos computadores para o trem, na esperança de que os assistentes compreendessem um trocadilho ou uma piada.

- É um trem que viaja no tempo – Bruce murmurou.

- Certamente é, certamente é.

Bruce deu um passo para trás, zonzo.

- Você está bem? – Moira perguntou, sem conseguir desviar por completo os olhos dos computadores. Ela não estava verde, mas pálida de surpresa.

- Estou. Não. Não, na verdade. Me sinto estranho. Acho que vou vomitar. Será que eu poderia?...

Wilcox arregalou os olhos, horror dos horrores. Pegou uma sacolinha de papel e estendeu-a de imediato a Bruce.

- Aqui, tome. Nada de sujeira perto das máquinas.

Bruce se retirou para trás de uma pilastra. Sentou-se no chão, possibilidade que, em tempos normais, teria encarado com um olhar de desprezo, situação tão anti-higiênica que era. Temeu olhar para Moira e avistar o trem. Temeu imaginar Wilcox varando véus do tempo dentro do mesmo trem, acenando de uma das janelinhas e pronto para iniciar a Terceira Guerra Mundial ou impedir a evolução das espécies, dependendo de onde acabasse parando.

- Vide, Moira, eu tenho aqui um pequeno problema – a voz do professor ecoava pela estação. – São as falhas temporais.

- Pequenas... falhas? Quer dizer como...

- Sim, exato. Suponhamos que eu estivesse na década de cinqüenta, fazendo – bem, não que seja da sua conta – o que quer que eu estivesse fazendo na década de cinqüenta, hipoteticamente, e então atravessasse um riacho e – puft! – desaparecesse. Um momento inteiro de não-existência. E então apareço de novo e lá estou eu, no meio do riacho, e não sei quanto tempo se passou ou deixou de passar porque, na verdade, eu não estava lá. Eu estava, simplesmente, não existindo.

- Você desaparece?

- Sim. Foi por causa disso que aterrissei na cabeça daquele pobre senhor. Eu vivo dando saltos por aí. Entendeu a piada, agora?

- Não é bem o momento para isso, professor.

- Perdão, Moira, perdão. Ah, Bruce, bom vê-lo de volta!

Bruce havia levado algum tempo para reunir forças. Estava mais fantasmagórico do que nunca, e alguma coisa, talvez o fato de ter vomitado o almoço, dava-lhe uma aparência hostil.

- Certo – anunciou, bruscamente. Precisou de alguns segundos para recuperar o ar. – Certo. Vamos fingir que estamos em um ambiente normal. Um ambiente que não está cheio de pessoas de quarenta anos que vivem no quarto extra da casa dos pais e que praticam atos inomináveis com frutas porque não conseguem arranjar uma relação sadia com outro ser humano.

- Está insinuando alguma coisa, Bruce? – Wilcox pareceu ofendido.

- O quê? Não – Bruce o olhou, confuso; depois, horrorizado. – Meu Deus, não. Do que diabos estava falando?

- Nada, absolutamente. Prossiga.

Bruce assentiu e se aproximou do trem. Hesitantemente.

- Essa... coisa... viaja no tempo?

- Viaja, é claro.

- Como? Está em uma galeria subterrânea que não existia há cem anos atrás. Como é possível viajar dentro dela?

Estação West Rotherhithe

Moira respirou fundo, tentando controlar o coração que batia tremendamente descompassado. Então era verdade – era tudo verdade. Wilcox tinha conseguido quebrar a barreira do tempo, ou então era vítima da maior ilusão de ótica da História da Ciência e Tecnologia.

Agarrou o braço do professor e foi caminhando com ele para longe da porta do restaurante, na direção da Oxford Street. Àquela hora, eram tantas as pessoas na rua que seria impossível ouvir o que eles diziam com atenção. Por via das dúvidas, Moira foi puxando o chocado Bruce pela manga do terno.


- Wilcox. Eu não vou perguntar o porquê... Mas eu tenho que perguntar como! – Moira finalmente cuspiu as palavras que estavam grudadas no fundo da garganta – Como é que você conseguiu?

- Consegui o quê, amorzinho?

- Quebrar a porcaria da barreira, o que você acha?!

- Ah, mas isso é um truque ótimo que eu aprendi.

- Então vai ter que contar. Ou eu vou desprogramar o GPS e dou as coordenadas pro Fahrenheit comer, juro por Deus!


Wilcox considerou a ameaça, ou pelo menos fingiu muito bem. Parou na porta da estação de Oxford Street, pouco se importando se estava atrapalhando o fluxo dos pedestres ou não (e estava – muito). Moira e Bruce o encaravam, ansiosos. Bruce parecia feito de parafina, tamanho era seu temor.


- Está bem. Eu vou mostrar. Mas vocês vão ter que vir comigo – e apontou a estação.

- De volta pro Hampton?

- Não, não. Para West Rotherhithe.

- West Rotherhithe? – Moira pareceu confusa - Que estação é essa?


O professor entrou no metrô e não respondeu. Ainda puxando Bruce pela manga do terno, Moira seguiu o chefe pelas escadas e para dentro do trem, a essa altura já um pouco mais vazio. Viajaram em silêncio por mais de meia hora, baldeando duas vezes. Em determinado momento, Wilcox saltou do trem, na estação de Rotherhithe.

Moira seguiu em silêncio, observando a plataforma vazia. Aquela, decidiamente, não era uma estação para turistas – era apertada e um pouco suja, como as estações de metrô de Londres calhavam de ser às vezes.


- Você deve saber, Moira querida, que algumas estações de metrô são desativadas para reformas. Existe, porém, uma linha inteira que não funciona mais. Ela cruzava esta estação, Rotherhithe. Estamos do lado do rio Tamisa, só para sua informação.

- E o que isso nos ajuda?


Havia uma porta, escondida num canto da estação, com uma gritante placa de “NÃO ENTRE”. E Wilcox entrou, sem cerimônia. Seus assistentes lhe seguiram por um longo corredor, cada vez mais frio e pouco iluminado. E de repente as luzes retornaram, e Bruce e Moira entraram em uma estação de metrô dos anos 1930, com ladrilhos encardidos e forração de madeira nas escadas rolantes que há muito não viam o sol.

Uma placa na parede indicava: WEST ROTHERHITHE.

A nota destoante no cenário era um trem novinho em folha, acomodado nos trilhos de mais de meio século de idade. E computadores, muitos deles. Moira podia reconhecer alguns dos aparelhos – tinha consertado a maioria deles. E o GPS, jóia da coroa, estava bem acomodado em cima de uma mesa.


- Você transformou o trem num acelerador? - Moira parecia embasbacada. Tinha agarrado a mão de Bruce, tamanho seu susto, e não se dera conta do fato.

- Oh, sim. Muito mais charmoso que um DeLorean qualquer, não? – Wilcox estava feliz da vida, quase saltitando pelo laboratório subterrâneo – E ainda tem saída para o galpão nos fundos da minha casa. É genial, não é? Ou seria genial, se eu conseguisse voltar para o mesmo lugar de onde eu saí. Semana passada eu caí dentro do rio. Isso não é bom.

Tuesday, August 15, 2006

Quando todas as visitas inconvenientes de Wilcox são explicadas

Wilcox sorriu.

- Vocês não demoraram muito, eh? Mais um pouco e eu teria ido comprar pipocas. Eles servem pipocas com calda de caramelo, ouvi dizer. Aqui, nas ruas. Lugar estranho.

Bruce não respondeu. Estava quase boquiaberto, sentindo-se um boçal. Não sabia se era melhor acreditar em Moira, em Wilcox ou na vozinha de sua própria consciência, aquela que lhe dizia que desistir de tudo, passar numa locadora e levar um DVD da Sandra Bullock para casa não seria uma experiência tão traumática quanto a poderia estar por vir.

- Está bem, Wilcox – Moira foi a única a falar. – Estamos ouvindo. Pode contar.

- Vão me dar algum crédito? – o professor estudou as unhas da mão esquerda com muito interesse. – E por que eu diria alguma coisa, depois do tratamento que recebi?

Bruce cerrou os dentes:

- Por favor.

- Certo. Então lá estava eu, no sossego do meu laboratório, quando fui visitado por um anjo: Eu mesmo, três meses mais velho.

- Continue.

- O eu de três meses à frente tinha conhecimento pleno do funcionamento da máquina e me ajudou a terminar de construí-la. Resolvemos alguns probleminhas aqui, outros ali, e tive minha primeira experiência no tempo.

- O restaurante?

- Não. Muito mais ousado do que isso. Visitei a minha infância!

Wilcox tirou de um dos bolsos um medalhão de ouro, com um emblema gravado.

- Vê? O brasão da minha família. Eu o tinha desde pequeno, mas o perdi aos treze anos de idade. Sempre achei que tivesse sido roubado por um velho maluco, mas não – o eu do futuro que o levou. Aqui, aqui atrás está a data. Estão vendo? Novo e brilhante demais para algo que foi feito no início do século passado, ahá. Não é incrível? – Wilcox colocou a jóia na palma de uma das mãos e a acariciou. – Feito em 1916. Mais de cem anos se passaram e este medalhão não presenciou nem a metade.

Guardou o medalhão no bolso, cantarolando.

- Depois veio Camden Town. Não pude tirar muito proveito da viagem, uma das secretárias da faculdade, por obra infeliz, acabou me reconhecendo.

- Elizabeth – Bruce murmurou, pálido.

- Ah, a própria!

- E então o restaurante? – Moira perguntou.

- E então o restaurante. Eu sabia que meu maior problema seria convencer vocês, e não vou poder fazer isso de verdade até que tenham visto a máquina e presenciado seu funcionamento.

- Você está louco, Wilcox – Bruce fechou os olhos.

- É provável. Vocês têm lido o jornal? Caí em cima de um senhor na semana passada, a caminho do restaurante, e espero que ele não tenha morrido. Seria lamentável, simplesmente lamentável.

O Verso

Moira encontrou Nicola servindo uma mesa. Ele olhou para os lados, como se esperasse a intervenção do maluco que seguira sua amiga na semana passada.


- Está tudo bem, Nicola! Meu chefe não vai invadir o restaurante! – Moira sorriu – Tem uma mesa para duas pessoas?


Somente quando os dois estavam devidamente sentados (embaixo de um retrato autografado de Gina Lollobrigida e um pôster da seleção italiana de futebol de 1982) é que Moira respondeu à pergunta de Bruce.


- Ele disse que podia provar. Você sabe, essa maluquice de viagem no tempo.

- E pode me dizer como?

- Fiz que ele ouvisse uma música, e disse para ele retornar ao passado e dizê-la para você. Obviamente, nada disso aconteceu, ou você se lembra que ele te disse alguma coisa parecida com uma letra de música na semana passada? – e, olhando o cardápio - Você vai de lasanha?


Bruce, no entanto, perdera a cor nas maçãs do rosto.


- Bruce? – Moira olhou por cima do cardápio.

- And I chanced upon a farmhouse, where the woman took me in – Bruce recitou o verso como se ele fosse um texto sagrado.


Moira derrubou o cardápio.


- Isso não está acontecendo - Moira só teve tempo de dizer isso, antes que que Bruce se levantasse e saísse correndo do restaurante.

Quando ele voltou à superfície, Alphonsine Wilcox ainda estava lá.

Back from Paris

Bruce esperava do lado de fora, apoquentado. Deu por sorte que Wilcox não tivesse seguido Moira; caminhou até a garota.

- Então? – perguntou. Ficara à mercê do vento, o nariz avermelhado para comprovar.

- Então? Então o quê? – Moira deu de ombros. – Wilcox só está eufórico. Nada com o que se preocupar. Você sabe. Está mais acostumado do que eu.

- Ah, é? Veremos – Bruce respondeu, a expressão de quem não cultiva fé nenhuma na humanidade. – Amanhã – completou, aliviado.

O metrô estava cheio. Conseguiu, no vagão, um lugar para Moira. Ficou em pé, observando todas as cabecinhas desconhecidas que o cercavam.

- Não te ensinaram que é falta de educação encarar os outros? – Moira indagou, sorrindo.

- Nunca se sabe o que se pode encontrar. Talvez um garçom que se pareça com... – Bruce apertou os olhos, enxergando alguma coisa do outro lado do vagão. - Wilcox?

- Um garçom parecido Wilcox?

Bruce piscou.

- Oi? Não. Era Vincent Price. Você ouviu alguém chamar meu nome?

Moira pareceu desconfiada.

- Esqueça – Bruce balançou a cabeça.

Já era noite quando se viram ao ar livre mais uma vez. As ruas estavam apinhadas de pessoas que, como eles, voltavam de mais um dia de trabalho.

- Vamos precisar comer na cozinha mais uma vez?

- Não – Moira riu. – Hoje não é um dia de muito movimento.

- Vocês aí! Parem imediatamente! – alguém gritou.

Bruce olhou para trás. Viu Wilcox atropelar duas criancinhas, receber uma chuva de tabefes de uma mãe e se desculpar antes de chegar até os dois assistentes.

- Oh, Deus. De novo não.

- Bruce! Moira! Que bom ver vocês!

- Estava nos seguindo – Bruce acusou.

- Bem, de certa forma. Eu dei um pulo no metrô. Dei um pulo. Entenderam o trocadilho? Rá!... ah. Deixem para lá, deixem para lá. Vocês ainda não podem saber. Prosseguindo. Tentei achar uma oportunidade de conversarmos antes que vocês entrassem no restaurante – Wilcox pareceu ressentido. – Não acho que aquele italiano tenha simpatizado o bastante comigo para me deixar entrar lá mais uma vez – sem avisos, sacudiu um dos ombros de Bruce. – Era o que eu queria falar! Estive com os vocês de alguns dias atrás, no restaurante do italiano!

- Eu sei – Bruce se desvencilhou bruscamente. – Eu sei, professor. É o que eu estive dizendo a semana inteira.

- Não teria feito sentido, meu assistente limitado. O eu da semana passada não saberia, de qualquer jeito.

- Certo. O quê, o quê?

Wilcox gentilmente apertou as bochechas de Moira, como se estivesse lidando com uma garotinha.

- E você, Moira, meu benzinho. Graças a você, Bruce já sabe. Ele só precisa de um estímulo para se lembrar.

Bruce segurou Moira e a afastou de Wilcox. O professor não fez menção de seguir os dois. Parecia encantado em observar os transeuntes, como se eles pertencessem a um novo universo.

- Certo – Bruce começou, quando achou que Wilcox já não podia ouvi-los. – Do que ele está falando?