Tuesday, October 24, 2006

A voz da razão

A sacristia da igreja era gelada.

Wilcox estava suando frio, observando seu avatar de 1973 esperando pela noiva. Era preciso fazer alguma coisa para evitar aquele desastre. Preferencialmente, a melhor coisa a fazer seria impedir que eles se conhecessem. Mas como a janela de tempo mais próxima coincidiu com a data do casamento, tanto melhor.

Ele etsvaa pendurado em uma coluna. Apenas um gesto e ele distrairia seu eu-do-passado, impedidindo que ele subisse ao altar. Ele estava bem próximo. Bem próximo. Era só fazer um gesto.

Abigail não era má pessoa, de maneira geral. Mas era uma má companhia para ele. Claro que quando você é um solteirão convicto, qualquer mulher seria uma má companhia. Não sabia como ela tinha convencido-o a se casar. Mas ele não ficaria para ver. Ajudaria o homem que ele fora a fugir.

Balançara perigosamente em cima da coluna.

Na hora em que ele iria pular, uma mão de mulher o puxou para baixo e para fora, com força que ele desconhecia. Ele perdeu o equilíbrio e caiu, com espalhafato, no colo de um homem magro e loiro.

Bruce!

Wilcox olhou para o lado. Moira, os joelhos ralados e o rosto bem vermelho, olhava para a cena dos dois homens caídos no chão sem saber se ria ou gritava.


- O que você está fazendo aqui?

- Atendendo um pedido de 2019, eu acho - ela deu de ombros - Você mesmo mandou que eu te impedisse de fazer essa loucura.

- Eu? Como?

- Se você sair de cima da minha caixa torácica, eu conto! - Bruce berrou, com o resto de fôlego que ele tinha.

Saturday, October 07, 2006

A noiva

O carro parou, com um solavanco, na frente da igreja. Quatro passageiras seguraram as saias dos vestidos. Abigail abriu um espelhinho de mão e inspecionou o próprio rosto – arregalou os olhos, horrorizada, e tocou uma bochecha com a luva branca.

- Vamos lá. É hora, enfim – a mãe de Abigail disse, tomando o espelho da filha e guardando-o dentro da bolsa. Usava um vestido azul, liso, e nenhum apetrecho, o cabelo bastante cacheado e carregado de laquê.

Abigail comprimiu os lábios, pensando se teria sido mesmo uma atitude conveniente. Louisa, uma das madrinhas, tinha a dama de honra sentada no próprio colo. A menina era gorduchinha e usava um chapéu florido. Parecia entediada.

- O que foi? – Louisa perguntou, permitindo que a dama de honra, antes que começasse a choramingar, descesse do carro – Está com medo?

- Aquele maldito Alphonsine Wilcox não vai aparecer – Abigail afirmou, cheia de repúdio.

O pai da noiva se aproximou para recebê-la. Estava irrequieto dentro do smoking escuro, dez vezes mais hostil do que o habitual. Estendeu a mão para a filha e não conteve uma pergunta:

- Onde se enfiou o Alphonsine?

Abigail fez cara de choro, descendo do Rolls-Royce. Ela se agarrou ao braço de Louisa, que quase tropeçou, puxada com violência antes de ter a chance de se equilibrar nos saltos dos sapatos.

- Ele não está aqui? Eu disse que ele não viria!

- Não entre em pânico – Louisa ajeitou a tiara florida.

- Eu não vou entrar na igreja sem que Alphonsine esteja dentro dela, ou juro por Deus...

A mãe de Abigail juntou-se a eles em passinhos descuidados:

- Onde está Alphonsine? Abigail? Por que está chorando? Pare com isso, está estragando a maquiagem.

Abigail afundou o rosto nas mãos e começou a soluçar. Não lhe importava a felicidade conjugal – só não queria que um paspalho como Wilcox a fizesse de boba na frente de mais de cem convidados.

- Eu não vou entrar na igreja!

- Ora, vamos, pare de chorar. Volte para o carro. Você vai com ela, Louisa. Seu pai e eu vamos ficar esperando.

A noiva e Louisa, erguendo as saias do vestido violeta, voltaram a entrar no Rolls-Royce. O motorista se assustou com a invasão.

- Hugh – a mãe de Abigail encheu a voz de autoridade, voltando-se para o marido. – Vou voltar para dentro e interrogar o pai dele. Se a situação não estiver resolvida em dez minutos, mande os garotos atrás do bastardo.

Bruce e Moira se esconderam perto de uma das pilastras. Um ciclista havia lançado um olhar suspeito aos dois, ao vê-los atravessando a praça.

- É ela? A ex-mulher do Wilcox? – Bruce indagou, incrédulo. O rosto enfurecido, trancado dentro de um carro de luxo, inspirava intolerância a tudo que o professor pregava e idolatrava, de Marylin Monroe à coleções de meias com estampas xadrez.

- Eu diria que sim.

- Não me parece o tipo de mulher capaz de coexistir com ele sob um mesmo teto – Bruce sorriu. – Não. Definitivamente.

- Você e o professor compartilham da mesma opinião.

- Devemos entrar na igreja?

- Não é com o Wilcox do passado que precisamos nos preocupar.

Thursday, October 05, 2006

1973 (Giving It All Away)

Estava ali, no registro do computador - as coordenadas levavam para maio de 1973. A fenda temporal ainda estava aberta, o que significava que Moira e Bruce podiam acionar a máquina mais uma vez e ir atrás do professor antes que ele fizesse a grande bobagem de alterar o tempo e com isso seu destino.



- Mas... Moira... você não sabe mexer nesse... nesse troço.


Ela olhou por cima dos óculos de leitura, com um muxoxo. A estação de metrô parecia ainda mais abandonada e fria. Bruce parecia ainda mais pálido sob as luzes das lâmpadas fluorescentes.


- Eu tenho uma idéia - lembre-se que eu ajudei a montar esse treco. E, de qualquer forma, o que você prefere? Esperar o Wilcox voltar e acertar a cabeça dele com uma borduna?

- É uma opção válida? Se for, eu aceito.

- Suba naquele trem. Eu vou acionar os comandos.

- O Wilcox não vale tanto sacrifício.

- Não me lembro de ter empurrado você até aqui.


Ela tinha uma estranha voz de comando, como se incumbida de uma missão impossível. Digitou alguns números no computador e logo o trem começou a apitar, como um dragão soaria se existisse. Por via das dúvidas, Bruce agarrou-se nos assentos, com medo da queda iminente.

E o trem começou a se movimentar.


***


I paid all my dues so I picked up my shoes
I got up and walked away.
Oh, I was just a boy, I didn't know how to play...


O rádio de um carro tocava uma canção de Roger Daltrey. O ar cheirava a chuva e terra molhada. Sinos ao longe. As mãos de Moira em seu rosto, mãos quentes contra um rosto gelado.


- Ei. Bruce. Bruce.

- 1973, eu presumo? - a voz saiu grogue, ele parecia que ia vomitar de novo.

- Exato. Cinco de maio de 1973. Um sábado.


Ele olhou para suas roupas, encardidas porque ele aterrisara dentro de um canteiro de petúnias. Moira não estava melhor - tinha caído na calçada e arranhado os joelhos.


- Onde é que nós estamos, exatamente?

- Se eu estou reconhecendo aquela igreja ali - apontou um prédio ao longe, enquanto Bruce se levantava - estamos em St. Martin In The Fields. Londres, portanto.

- Ótimo. Como é que nós vamos achar o professor?


Ela apontou um Rolls-Royce branco que descia a rua.


- Vamos seguir aquela noiva... Pode ser um bom palpite!