Thursday, August 02, 2007

A estranha cria do tempo

Peter não era o tipo de pessoa que inspirava simpatia. Ele inspecionou Kirk com frieza, do pé direito ao topo da cabeça grisalha. Deu um sorriso repelente.


- Bonsoir.

- Amigo novo do Glen? – Kirk quis saber. –É um pouco jovem para...


Kirk não continuou. Peter parecia ter decifrado o que ele pretendia dizer e somente aumentou o sorriso. Sóbrio demais para ser um beberrão.


- Bem, meu nome é Kirk. Prazer.

- Peter. Você parece ser um sujeito decente, embora use costeletas assimétricas.


Kirk olhou para Nicholas, que somente balançou a cabeça; ele já havia desistido de tentar compreender o rapaz.


- Se não se importam – Nicholas começou. – A noite avança e estou morrendo de frio. Preciso me esquentar.


Peter não saiu do lugar em que estava.


- Não se esqueça de ligar para a sua esposa – disse.


Desconcertado, Nicholas, um pé já dentro do pub, voltou-se para encará-lo. Resmungou alguma coisa. Kirk deu-lhe um tapinha leve nas costas e o seguiu.


Peter permaneceu do lado de fora, olhando para o céu escuro.

Um homem com pé torto

Estava frio - as janelas do The Trooper estavam embaçadas. Era tanta gente do lado de dentro que caminhar se tornara um desafio.

Kirk saíra arrastando o pé direito, arruinado há tantos anos, pronto para encarar o ar gélido das noites de Norwich. Mais uma noite que descia. E lá vinha Nicholas, descendo a rua, os passos incertos e as mãos dentro dos bolsos do sobretudo surrado.

Todas as noites eram assim. Nicholas não falava coisa com coisa nem mesmo sóbrio; quando bêbado, virava um gênio incompreendido e um chorão de marca maior. Naquela noite, ele vinha lado a lado com um garoto de uns dezessete anos, cabelos castanhos, casacão de lã encardido.

Eram parecidos, Kirk pensou. Nicholas sempre falava do filho, Bruce, que morava em Londres. Mas o garoto que lhe acompanhava parecia bem mais jovem. Quem pode dizer se ese aí também não é dele? Os homens sempre aparecem com alguma novidade, Kirk riu para si mesmo.


- Boa noite, meu velho - Nicholas cumprimentou com um gesto de cabeça.

- Boa noite, professor - Kirk não perdia a oportunidade de mencionar o apelido de Nicholas - O jovenzinho aí, quem é?

- Ele? - Nicholas olhou para o lado, como se feliz de ver que não estava tendo alucinações - Ele disse que se chamava Peter.

Wednesday, August 01, 2007

Monstros

Quando desceram do trem, Bruce puxou discretamente o braço de Moira.


- Um maluco apareceu na minha sala de aula. Ele disse que se chamava Peter.


Moira não respondeu. Ela estalou a língua e pareceu ausente durante um ou dois instantes, como se procurando assimilar o que acontecia.


- E então?

- Sim – foi o que Moira disse.

- Sim? Quem é Peter? Porque eu sei, e Deus sabe, que existem muitos homens chamados Peter por aí, mas algo me diz que o Meu Peter e o Seu Peter são o mesmo Peter.

- O que estão fazendo? – Stella se aproximou. – A plataforma está ficando muito cheia.


Bruce notou o olhar quase faminto que alguns homens recostados na parede dirigiam ao trio. Ele não sabia o quanto as pessoas eram miseráveis naquele futuro, mas tinha uma vaga idéia. Empurrou levemente Moira para junto da mãe e caminhou ao lado das duas, afastando-se daquela área.


Bruce voltou-se para Stella assim que deixaram a estação:


- Onde fica o The Trooper?

- Mas você não sabe? – Stella perguntou, risonha.


A resposta pareceu entalar na garganta de Bruce. Ele grunhiu e deu de ombros.


- Bruce não foi criado em Norwich – Moira se apressou em dizer.


E então ela arregalou os olhos, ciente da própria gafe.


- Eu fui, é claro que fui, Moira – Bruce riu, levemente desesperado. – Mas eu saí já há muito tempo. Londres consumiu toda a parte do cérebro que eu dedico ao mapeamento mental de cidades.


Poderia existir uma desculpa pior? Um Bruce de dez anos ergueu a cabeça quando a porta foi aberta. O professor, perplexo, olhou para o garotinho – uniforme em ordem, ausência em classe não percebida: “Como conseguiu a chave desta sala?”; “Eu encontrei debaixo do meu travesseiro”.


- Sempre posso piorar as coisas.

- O que disse?

- Nada. Não seria melhor pegarmos um táxi ou algo assim?


Stella gargalhou.


- Você é engraçado, Bruce. Não confiaria a integridade física de nem mesmo um saco de açúcar a um táxi que circule por aqui.


Caminhar não seria um problema, Bruce decidiu. Ele precisaria de tempo para digerir o inevitável encontro com um pai que estava morto há mais de vinte anos.


- Está se sentindo bem? – Moira murmurou.

- Eu preferiria ter descoberto que sou casado com a Golda Meir do que precisar rever o meu pai. Apenas uma forma alegórica de demonstrar como eu me sinto no momento.