Thursday, November 30, 2006

A vida como ela é

A semana seguinte foi das mais absurdas de que Bruce se recordava. Edward havia deixado o hospital; Honoria, por precaução, estava em Norwich.

De volta a Londres, cumprindo sua palavra, Moira não reapareceu. Mas Wilcox também não, e Bruce, em uma terça-feira, sentado no gramado do quintal, observando o galpão fechado, ficou imaginando se acaso o professor não deletara a própria existência, impedira seu próprio nascimento para se redimir.

Mas os sinais de Wilcox ainda estavam lá; Fahrenheit, a bagunça usual, bilhetinhos grudados nos lugares mais inusitados, com instruções que Bruce seguia mecanicamente, feito um robô.

O silêncio da casa, que antes apreciava, agora só fazia incomodá-lo.

Quando Rose ligou, foi como colocar a cereja no topo do bolo.

- Você não deu mais notícias – ela acusou. Bruce sabia o que viria em seguida.

- Rose... eu nem posso começar a explicar o que foram os últimos dias.

- Ele morreu?

- Quem?

- O homem que estava morrendo.

- Não, não morreu. Está vivo. Está bem. Obrigado por perguntar.

- Bom. Quando vou poder ver você?

- No dia em que eu achar uma forma de encontrar quem roubou a minha rotina, enchê-lo de pancadas e tomá-la de volta.

- Está tentando ser engraçado, Bruce?

- Eu bem que gostaria.

- Eu poderia lembrá-lo de que vou participar de um desfile no sábado, mas não vejo motivos. Você, é claro, não vai comparecer.

Bruce esfregou os olhos. Não era capaz de imaginar como seria um desfile de moda, e tinha até certo medo de se permitir pensar a respeito.

- Você supõe demais. Quando vai ser?

- Sábado. Eu disse.

- Sábado, que horas, florzinha?

- Vai começar às seis da tarde, mas eu vou precisar estar lá desde manhã, então...

- Estarei lá às cinco. Rose, preciso voltar ao trabalho. De verdade.

Rose respirou fundo.

- Muito bem. Eu ligo mais tarde.

Bruce guardou o celular no bolso. Sem hesitação, pegou o casaco e saiu.

Quando Wilcox descobre que fez uma grande burrada, enfurecendo sua assistente a um ponto até então desconhecido

- Wilcox! É Moira! O Bruce desmaiou! Eu não sei o que você fez, mas se você fez alguma bobagem eu vou até Londres arrebentar seus miolos com o que sobrar do GPS da máquina do tempo! Juro por Deus!

- Moira, eu acho melhor você se sentar. Você não sabe, mas a sua mãe...

- Que tem ela...

- Talvez você não seja... bem... Filha do Arthur Harris. Pronto, está dito!


Moira deu uma risada amarga.


- Você não ia ser o primeiro a dizer isso.

- Não? Quer dizer, você... você já sabia? E ainda assim anda para cima e para baixo com o Bruce? Abusando da inocência dele?!

- Que é que o Bruce tem a ver com isso?

- Nicholas Glendoning!

- Que tem ele?!

- A sua mãe e ele...

- Minha mãe e meu avô eram meio que guardiões do pai do Bruce, pelo que a mãe dele - a mãe do Bruce, certo? - me contou. Carregavam-no para cima e para baixo quando ele estava bêbado.

- Meu bom São Jorge! Você sabe que você não é filha do Arthur Harris e...

- Eu sou filha dele. Tenho os olhos dele, pelo amor de Deus! Meu avô paterno - que eu nunca conheci - é quem contestava a paternidade. Meu pai foi expulso da família por causa da minha mãe. Literalmente.

- Quem é Saville?

- Saville? John Saville? É meu tio! Na verdade, ele é meu primo em segundo grau, primo do meu pai. E o que tem ele a ver com esse troço todo?



Bruce acordara. Estava tentando se sentar, tateando o sofá com mãos trêmulas.



- Wilcox. Você não está me dizendo... Minha mãe? O pai do Bruce? Mas você bebeu! Nem em sonhos! Meu avô teria matado alguém - se dona Honora não tivesse matado antes! De onde você tirou tanta idiotice?

- Eu...

- Seu cérebro deve ter derretido com tanta viagem no tempo. Sugiro que você vá descansar. E que vá procurar outra técnica para seus computadores, porque eu me demito!

- Você não pode se demitir!

- E você não tem o direito de ficar fuçando no meu passado! Passar bem!



Moira desligou o telefone com tanta força que não o quebrou por pouco. Voltou-se para Bruce, que estava deitando no sofá, verde como uma folha.


- Ele está delirando.

- Ele não foi ver o meu pai. Foi?

- Foi.

- E você não se demitiu, certo?

- Sim, eu me demiti.


Ele não contestou. Parecia exaurido.


- E não, meu chapa, até segunda ordem a gente não é irmão. Minha mãe tinha muitos defeitos, mas acho que adultério não constava na ficha.

-Ótimo. Eu não sei se conseguiria encarar o fato.

- Acredite, eu muito menos.

Como enlouquecer seu chefe

- Bruce.

- Sim. Bruce. Mais uma vez. Escute, Wilcox, Moira está assustada e, francamente, eu também. Pode me explicar o que está acontecendo?

- Bruce, quer ouvir uma coisa engraçada? Eu fui visitar o seu pai...

O universo parou de se movimentar.

- Não – Bruce respondeu, automaticamente, com uma risada. Sentiu-se zonzo.

- Não, não. Eu fui mesmo, de verdade. Minhas roupas até cheiram a...

Yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda.

- Bruce? Está me ouvindo?

Yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda.

Moira balançou Bruce pelos ombros. Ele voltou ao plano terrestre; olhou-a, abismado, e depois se deu conta de que ainda tinha o telefone em mãos.

- Wilcox – a voz de Bruce era um fiapo. – O que você fez?

- Pois então. A parte engraçada está justamente no fato de eu não ter feito nada. Mas o seu pai, na verdade, bem, aquele Nicholas, parece ter feito bastante.

- Moira disse que tem a ver com a mãe dela.

- Sim. Eu acho que há uma pequena possibilidade de que vocês sejam irmãos. Você e Moira – não você e a mãe dela. Bruce? Está aí?

Yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda yadda...

Filiação

Bruce passou o telefone para Moira, gelado de susto


-É isso. Ele matou a Rainha Vitória. Ou então se transformou no herdeiro da coroa sueca, eu sei lá. Atende.


Moira levou o telefone ao ouvido.


- Professor, aqui é a Moira.

- Moira, meu anjinho. Eu acho que eu tive um probleminha com a máquina.

- Ai, meu Deus... Que tipo de probleminha?

- Não saberia explicar. Eu estou... Ainda... Pensando no modo como eu vou dizer isso.

- Professor, se o senhor, de alguma forma, matou a sua ex-esposa, eu juro que eu não me responsabilizo!

- Quê? Abigail? Não! Não, eu não cheguei nem perto dela! Moira... Moira, meu benzinho, você me disse que adora mapas... Você me disse que é órfã... O seu pai, como ele se chamava?

- Arthur Harris, professor.

- Arthur Harris. Ele era loiro?

- Professor, mas que conversa ridícula é essa? Meu pai tinha cabelo castanho! Aliás, meu pai e minha mãe!

- Stella Morris?

- Sim! Stella Morris! Pode me dizer o que...



Moira afastou o telefone e praguejou em voz alta.


- Bruce, ele fez alguma bobagem das grandes.

- Se envolve a Marylin Monroe...

- Envolve a minha mãe - e, depois, ao telefone - Wilcox, diga de uma vez só. Por favor.

- Passe o telefone para o Bruce!

Mais más notícias

Bruce pegou o telefone sem fio. Aproximou-o do rosto com a mesma vontade com que teria se aproximado de lixo radioativo.

- Wilcox?

- Bruce. Não diga nada.

Bruce não disse; Wilcox, tampouco.

- Wilcox? – Bruce repetiu, depois de ser deixado sem resposta durante cinco minutos. Winifred passou pelo corredor, logo atrás dele, com a desculpa de ajeitar um dos quadrinhos da parede. – O que está acontecendo?

- Silêncio. Estou escrevendo o que vou dizer.

- Está o quê? OK. Certo. Vamos por partes. Se está escrevendo, por que está ao telefone ao mesmo tempo? Eu sou algum tipo de musa? Tália? Melpômene?

- Estou escrevendo o que vou dizer para você. Deus. É tão difícil...

Bruce balançou a cabeça.

- Não vou me casar com você, se é o que está tentando propor.

- Muito engraçado, Bruce. Você é um humorista nato.

Quando Winifred passou pela segunda vez, Bruce baixou o tom de voz. Começava a ficar zangado.

- Wilcox, eu realmente, realmente não posso lidar com mais uma das suas crises criativas neste momento. Moira está aqui e...

- Moira? – Wilcox berrou, de repente.

Bruce afastou o ouvido do fone. Visualizou o mundo se partindo e uma tartaruga gigante se erguendo do núcleo do planeta.

- Ah. Moira, sim.

- O que ela está fazendo aí?!

- É uma longa história. Vou lhe contar tudo, com prazer, semana que vem.

- Quero falar com ela!

- Por quê? Vai propô-la em casamento também?

- Preciso falar com ela. É urgente. Tem a ver com a máquina – Wilcox exigiu, a respiração de quem havia acabado de correr uma maratona.

À mesa (Tempo Prersente)

- Você não me contou que era rico, meu caro.

- Rob é rico. Eu sou quando muito remediado.


Moira deu uma risada, tímida. Nunca tinha ido numa casa que tivesse uma cozinheira, como era o caso da residência de Sandringham. Bruce roubara uma tigela de macarronada e agora os dois jantavam em paz, ainda que atrapalhados como sempre, próximos do jardim da casa.


- O Wilcox deu sinal de vida?

- Nenhum. A gente devia se preocupar?

- Sei lá. Você o conhece melhor do que eu.

- Às vezes ele fica dias sem aparecer no escritório. Uma semana, foi o recorde. Quer mais queijo?

- Não, obrigada. Mas de qualquer forma, Bruce, e se ele se perdeu no tempo?


Bruce deu de ombros. Tinha acabado de sujar a manga da camisa com molho de tomate. Tratou de limpar com o guardanapo, mas terminou sujando ainda mais.


- A gente vai saber, se acordar amanhã cedo em uma república ou coisa assim.

- Ei, essa é a minha teoria! - ela riu, estapeando o braço dele.


O telefone soou dentro da casa. Dali a alguns instantes, Honoria apareceu no jardim.


- Bruce? É o seu chefe, querido. Ele parece preocupado.


Bruce e Moira se entreolharam - até que tinha demorado para Wilcox dar sinal de vida.

Para a posteridade

Wilcox escreveu uma carta explicando tudo para seu eu do futuro, uma segunda carta explicando tudo para Moira e ainda uma terceira carta explicando tudo para Bruce. Queimou as duas últimas.

A carta para seu eu do futuro dizia:


“Como eu poderia não saber? O que significa, aqui, como você pôde não me contar? Posso estar compactuando com um crime!”


E:


“Talvez eu devesse despedir um dos dois”



E também, muitas linhas depois:


“Agora eles já têm um relacionamento fora do trabalho. Wilcox, eu nos odeio.”


Ele lacrou o envelope. Guardou em uma das gavetas que tinha o hábito de trancar, tendo passado, antes, meia hora sem saber o que fazer a respeito. Somente um outro Wilcox teria a chave certa para abri-la e ler a carta.

Fez chá e aproveitou o resto da tarde em completa intranqüilidade. Quando começava a anoitecer, pensou em ligar para Bruce. O celular estava desligado. Wilcox respirou fundo e controlou o impulso de discar o número de Sandringham.

Para se ocupar, eliminar todas as surpresas do dia, pegou uma antiga foto de Abigail – seu segredo mais obscuro; ninguém sabia da existência do retrato –, sentou-se e passou a desprezá-la em silêncio.

Quando Wilcox descobre mais do que devia

Stella apoiou Nicholas em seu ombro, dividindo o peso com Wilcox.


- Vem, eu te levo para casa.

- Stella, eu não preciso de ajuda! - Nicholas respondeu, ríspido, mas não se moveu um centímetro de fosse para longe.


Stella suspirou e olhou para Wilcox, com ar de resignação. Parecia bem acostumada com os porres do amigo, tanto que não respondeu a ele e sim ao estranho velho que o acompanhava. Era tão comum que estranhos ajudassem Nicholas a sair do The Trooper que ela nem mesmo se dava ao trabalho de perguntar seus nomes.


- Ele mora mais para a frente, na Red Lion Lane. O senhor poderia...

- Mas é claro, senhorita - Wilcox sorriu, ainda suando frio.


A casa na Red Lion Lane era uma bagunça de livros, cadernos e anotações. Como Bruce, muitos anos depois, também Nicholas reinava supremo entre o caos e a genialidade latente. Como o filho, ele também adorava mapas e a História do Mundo.

Stella o colocou no sofá, as mãos finas puxando o cabelo que insistia em cobrir os olhos do amigo. Wilcox permaneceu ali, observando a dupla sem ser notado.


- Nicholas, eu me pergunto quando você vai tomar jeito na vida.

- Bela Rebecca, eu vou me casar - Nicholas riu, sem responder a pergunta.

- Casar?

- Eu decidi que não vou enrolar a minha Rowena muito tempo. Acha que a Honoria vai dar um jeito em mim?



Nicholas pegou as mãos de Stella e sorriu, amargamente.


- Uma pena que um Ivanhoé só pode seguir a risca o roteiro. Mesmo um Ivanhoé bêbado como eu. Você promete que não vai virar uma freira em Granada, como no livro?

- Nicholas, por favor - Stella soltou-se com um gesto rápido.

- Porque poderia ter sido diferente. Se eu não fosse essa garrafa de whisky disfarçada de gente. Enfim. Eu vou dormir. Prometo que vou me comportar. Agora eu vou ser um homem sério. Mesmo sem a sua presença, eu juro que vou ser sério.

- Você sempre diz isso.

- O homem sério pode ganhar um beijo de boa-noite?



Stella inclinou-se e beijou a testa de Nicholas, com um sorriso.

Wilcox sentiu a cabeça doer, sinal de que o buraco no espaço tempo estava se fechando novamente. Mas não queria partir. Aquela cena estava interessantíssima. Era um casal apaixonado - ou pelo menos o rapaz era - terminando tudo. Ou recomeçando.



- Stella Morris, eu te amaldiçôo - Nicholas disse, de brincadeira - Você vai ter uma filha e ela vai se parecer comigo só de birra.

- Deus me livre, uma filha alcóolatra!

- Não. Uma menina que amará os mapas e os jogos. Só para te complicar a vida.


Foi quando Wilcox desmaiou.

Quando acordou, estava novamente na estação-laboratório. Sozinho. E assustado, porque se lembrara no meio do caminho com quem a tal garota se parecia.

Ela era a cara da Moira!

Wednesday, November 29, 2006

Triângulo

Nicholas estava com a cabeça debruçada sobre os braços, oscilando entre diversos universos paralelos, e não reparou quando alguém veio cutucar seu ombro. Depois de um empurrão, no entanto, ele despertou, mal-humorado.

Um senhor estava de pé, parado, como se aguardasse.

- Sr. Glendoning, olhe para você – disse o homem, em reprovação.

Nicholas olhou; estava com a velha jaqueta, sapatos limpos e nenhum sinal de vômito na camiseta.

- Quis dizer, veja a situação vergonhosa em que se coloca – o estranho acrescentou, e puxou Nicholas, na intenção de levantá-lo.

Nicholas não tinha forças para protestar.

- Quem diabos é você? – perguntou. O homem que o abordara de forma tão inconveniente parecia, por qualquer razão, não fazer parte do cenário.

- Meu nome é Alphonsine Wilcox. Suponho que você possa saber. Não vai interferir no futuro.

Nicholas franziu o cenho e depois riu alto, pateticamente.

- O quê? Como assim?

Mas a menção do futuro fez com que sentisse um arrepio na espinha, e, depois, náusea. Ele agarrou o braço de Wilcox, quase cambaleando.

- Escute. Senhor. Preciso ir para casa.

- Certamente, Nick.

Wilcox o ajudou a deixar o pub. Enquanto caminhavam pelas ruas, a cabeça de Nicholas começou a doer. Ele olhava para o lado, de vez em quando, encarando o professor com a mais profunda estranheza, e, de repente, por razão nenhuma, parecia perdido, desligado do mundo.

- Agora, onde você vive, senhor Glendoning?

Nicholas ergueu o braço, apontando para uma esquina, mas então viu uma silhueta familiar. Stella vinha pela calçada, tremendo de frio; ao reconhecê-lo, arregalou os olhos.

- Nicholas – ela disse, e olhou para Wilcox. – Estava preocupada. Onde você... o que está havendo?

- Nada – Nicholas murmurou, não sem rancor. – Estava indo para casa, você vê. Este bom senhor me ofereceu ajuda, já que, ao que parece, eu mal consigo ficar de pé.

Wilcox começou a suar frio. Não era bem o que havia planejado.

Um Ivanhoé

Enquanto isso, no passado, Nicholas Glendoning virava mais um copo de whisky, os cotovelos apoiados no balcão de madeira escura do The Trooper. Era sexta-feira, começo da noite. O pub estava começando a encher e os sons e cheiros se tornavam mais familiares: a música saindo da jukebox, os gritos dos jogadores de dardos, a fumaça dos cigarros e o cheiro de comida. O calendário berrava a data: setembro, 1974.

Como foi que ele se enfiara naquela situação ridícula?

Repassava mentalmente a cena. Podia se lembrar bem da primeira vez em que ele a vira. Noite de São Valentim, 1972. Estava bêbado, para variar, e Edward o levou para casa com a dificuldade costumeira. Stella estava no banco do carona, observando-o como se ele fosse um marciano recém-aterrisado em Norwich.

A única lembrança que tinha daquela noita em especial foi a de ter se erguido, com dificuldade, nos braços de Edward, e declamado alguma bobagem do Ivanhoé - provavelmente alguma coisa sobre a beleza de Rebecca, que tinha cabelo escuro como a filha de seu anjo protetor.

Porque só aquele título explicava a função de Edward Morris em sua vida. Desde a primeira vez que se encontraram, nos balcões do The Trooper, o velho jardineiro tomava conta dele como se fosse um filho dileto. E Nicholas aceitava o tratamento sem protestar. Era bom ter alguém por perto.

Os anos se passaram e Nicholas conhecera Honoria. De certo modo eles eram água e óleo, mas ela era louca por ele. Edward dava conselhos, ajudava no que era possível. Honoria passou a adorar Edward, como se ele fosse da família.

E estupidamente Nicholas passou a adorar Stella. Veladamente, cortês como um dos cavaleiros de Sir Walter Scott. Sentia-se o próprio Ivanhoé, tendo Honoria como Rowena e Stella como Rebecca. Ele admitia que era ridículo. Mas, ridículo ou não, era a situação na qual ele estava envolvido.

E naquela noite, Stella viera lhe contar sobre um rapaz que ela conhecera. Um estudante na universidade, um sujeito cabeludo chamado Arthur.

Ela estava apaixonada. Stella Smith-Morris, que nenhum homem parecia ser capaz de notar, vendo o mundo em technicolor por causa de um magrelo de Cambridge. E sendo amada em retorno.

Nicholas olhou para o fundo do copo.

Talvez fosse melhor resolver a situação. Afinal, no final, Ivanhoé casou-se com Rowena, não com Rebecca. E Honoria não esperaria para sempre...

Tea / Supper

Wilcox acendeu a luz do laboratório. Seu outro eu estivera cochilando, mas abriu os olhos repentinamente, confuso. Os dois gritaram.

- É melhor nos acostumarmos a esse tipo de imprevisto – o Wilcox do presente disse, cinco minutos depois, de olho roxo, quando servia chá para o visitante. O Wilcox do passado assentiu, e seus dedos tremiam quando pegou a xícara.

- Foi tudo um grande erro – explicou o segundo Wilcox. – Eu precisei consultar uma fonte. Onde você estava?

- Visitando o pai de Moira.

- O pai de Moira? Ainda não cheguei lá. Alguma razão em particular para fazermos isso?

- Não. Mas tivemos esta conversa quando eu era você e, bem, achei que eu estava destinado a fazê-lo, de qualquer jeito. Não se pode ir contra a maré, em casos assim. Respeitar a ordem dos acontecimentos e... todo o resto. Deus sabe o que eu teria criado se houvesse desobedecido.

- Certo.

Os dois professores tomaram o chá em silêncio. Algum tempo depois, o Wilcox do passado perguntou:

- Bruce e Moira já sabem?

Milhões de possibilidades se desdobraram na mente do Wilcox do presente.

- Sobre?

- O futuro.

- Ainda não.

- É melhor, mesmo.

- De acordo com um Wilcox do futuro, nossa interferência nem chega a ser necessária.

- Imaginei, imaginei. O que mais ele disse?

- Que era melhor visitarmos um dentista enquanto ainda havia tempo.

- Fez isso?

- Não.

- Bom.
**

Bruce abriu a porta do quarto de hóspedes. Era bonito, com paredes verdes, uma cama de casal feita de madeira escura e coberta por colcha de retalhos. Havia um armário, uma cômoda e uma televisão.

- Quando Finnigan não está, este lado do corredor é o mais silencioso da casa – Bruce contou.

Moira observou o quarto e sorriu.

- Obrigada. Eu não queria dar trabalho para você ou para a sua família.

- Não é trabalho – Bruce olhou para o chão. – E desculpe por não ter salvado você do interrogatório da minha mãe. Eu acho que desmaiei dentro daquele trem.

- Posso perdoá-lo por isso, daqui a alguns anos – Moira deu um leve sorriso. – Eu gosto da sua mãe. E ela parece gostar muito do meu avô, também.

Bruce balançou a cabeça, um pouco sem graça.

- Bem, é um histórico de relacionamentos da família que eu ainda não conheço muito bem – ele se calou por um instante. – Escute. Está com fome?

- Bastante, na verdade – Moira pareceu aliviada.

- Venha, então.

- Já serviram o jantar?

Bruce riu.

- Importa?

Friday, November 24, 2006

Entreato

Moira soltou um suspiro que escondia uma risada.


- Espera só o Wilcox descobrir isso.

- É melhor que ele não descubra. Você sabe, vai dar problema.

- Ele está entretido demais com o brinquedinho dele para notar que a gente existe, não se preocupe - e, recolocando a foto no envelope amarelado - Por falar nisso, você avisou que eu não vinha trabalhar?

- Não. Tampouco avisei que eu não viria. Como você disse, ele está muito ocupado.


Honoria e Rob voltaram para a sala de espera, porque os médicos não permitiram a entrada dos visitantes. Um dos enfermeiros - um garoto de olhos azuis, recém-formado - disse que Moira poderia voltar para casa, já que não podia dormir na UTI como acompanhante.


- Meu bem, você quer carona para casa? - Honoria perguntou, com ar genuinamente preocupado.

- Até aceitaria, mas eu tenho que passar no supermercado antes. Eu não tenho o que comer em casa.

- Então aceite nosso convite para jantar.



Moira olhou para Bruce com o canto dos olhos. Ele deu de ombros, acostumado que era aos trejeitos da mãe.


***

Enquanto isso, Wilcox observava os dois homens conversando próximos ao balcão do pub. Tudo parecia tão triste ali, tão desesperançado. Era o ano do "inverno do descontentamento", o último antes da Era Thatcher, com greves se empilhando, outra crise do petróleo batendo às portas e o desemprego correndo solto. Não havia motivos para risadas naquela cidade.

Mas os dois homens pareciam felizes. Um era alto e moreno, cabeludo, com ar de sono, mãos apoiadas no balcão. Seu interlocutor era ruivo, cabelo escovinha, ar de pouquíssimos amigos.


- E como vão chamar a criança? - o ruivo perguntou, abrindo um sorriso tímido.

- Se for menino, vai ser John. Ou Peter, como quer a Stella.

- São boas opções. Se for menina? Adelaide, como a avó?

- Não! Vai ser Moira.

- Moira? Bah, celta demais! Preferia Adelaide.

- Quando você tiver filhos, Saville, você pode batizar como você bem entender.

- Quando deixarem que bichas como eu adotem crianças, pode apostar que eu vou exercer tal direito.


Saville, o ruivo, ergueu o copo vazio num brinde.


- À Moira Harris, ainda não nascida. Porque eu aposto que vai ser uma menina.

- Você pode ver o futuro, Saville? - Arthur Harris, o pai de Moira, riu alegremente.



Wilcox desapareceu num buraco no tempo antes de intervir como gostaria.

Thursday, November 23, 2006

Mau Começo

Bruce devolveu o retrato, sorrindo de forma quase gentil (evento raro), e cruzou os braços. Dirigiu os olhos para nada em especial – a ponta dos sapatos.

- É o meu pai. Era – disse.

Moira virou-se para ele, completamente surpresa. Tentou relacionar o homem da foto a Bruce, mas, no primeiro momento, pareceu-lhe difícil.

- Seu pai?

- Sim. Nicholas Glendoning. Grande Nicholas Glendoning.

Ainda estudando a foto, Moira sorriu. Bruce não percebeu.

- Explica algumas coisas – Moira comentou, um pouco sem graça.

- Explica, sim. É um bom começo.

- Começo de quê?

Bruce franziu o cenho.

- De... é algo que as pessoas dizem.

De repente, Bruce colocou a mão no bolso, puxando o celular. A tela não indicava nenhuma ligação perdida, ou recados, e Bruce quase suspirou de alívio.

- Pensei que...

- Sim?

- Que o celular tivesse... você sabe. Tocado – ele guardou o celular. Olhou para as paredes brancas à sua frente. – Não gosto de hospitais.

- Estou começando a notar.

Wednesday, November 22, 2006

Ponto de Virada

Moira deu de ombros - estava tão cansada e tão confusa que qualquer coisa que ele dissesse soaria sensato. Colocou o maço de cartas em outra cadeira e fez um gesto para que Bruce se sentasse a seu lado.

Enquanto Honoria e o marido saíram à procura de um médico, Bruce observou as cartas em cima da cadeira. Um grande maço, amarrado com uma fita de cetim verde. E em cima de todas as cartas, uma foto. Um pub enfeitado para uma festa: tijolos à vista, jardim, um banco de plástico num canto, gente bebendo do lado de dentro. Edward, mais moço, sorrindo como sempre, despreocupado como sempre, feliz da vida.

E o outro homem. Encostado à parede, ar desconfiado, um sorriso meio forçado no rosto pálido. Loiro. Grandes olheiras - as mesmas que Bruce tinha herdado.


- Posso ver essa foto?


Moira passou o retrato, sem perguntar muito. Era ele mesmo: Nicholas Glendoning, o pai de Bruce. Era esse o ponto de contato entre os dois homens - Edward Morris era muito amigo de Glendoning. Tentou impedir que este se matasse na bebida, sem grande sucesso.

Pela primeira e provavelmente única vez, Bruce conseguiu entender porque Moira tinha aquela vontade de voltar no tempo. Segurando aquele pedaço de história - um registro perdido de um encontro que acontecera antes que ele nascesse - não existia uma vontade de estar ali? De ver o que tinha acontecido - não imaginar, ver, ser testemunha?


- De onde é essa foto?

- Estava nuna carta que minha mãe mandou para o meu avô. Parece que é da festa que ela e meu pai deram quando anunciaram o noivado.

- E isso foi quando?

- 1978, com certeza. Eu conheço o pub, é o The Trooper. Meu avô freqüentava o lugar.

- Sabe quem é o homem com o seu avô?

- Não tenho a menor idéia.


Bruce se permitiu sorrir por um instante.


- Claro que não.

Monday, November 13, 2006

Reencontro

Esperando Rob se informar na recepção, Bruce redescobriu o quanto desgostava de hospitais. Quando seu pai fora internado pela primeira vez, muitos anos atrás, lembrava-se de ter passado quase uma semana dentro de um. Honoria, naquela época, não sabia com quem deixá-lo. Londres era grande e assustadora demais para um garotinho, e Bruce sentira-se, a princípio, aliviado por faltar à escola.

Acabou por se tornar conhecido de duas senhoras que dividiam um leito, para quem, às vezes, mudava os canais de tevê. Uma delas faleceu antes que o pai de Bruce recebesse alta, e ele observou, pálido, enquanto retiravam o corpo em uma maca coberta. Embora muito pequeno, já tinha certa consciência do que era a morte. O pai lhe explicara durante o enterro do avô.

Passara o resto daqueles dias na sala de espera ou na lanchonete, longe dos quartos e dos pacientes. O trauma criou-se com o tempo. A cada novo ano, as lembranças pareciam piores.

- Bruce – Rob retornou. – Já tenho o número do quarto.

Bruce seguiu o padrasto em silêncio. A mãe aguardava ao lado de Moira, as duas sentadas em bancos do corredor. Honoria se levantou.

- Que bom que chegaram – ela beijou os dois.

Rob pareceu acanhado. Ele estendeu a mão para Moira.

- Sou Robert, o marido de Honoria. Conheço seu avô já há algum tempo. Como ele está?

Moira aceitou o cumprimento, erguendo-se.

- Estável. Mas não sei se isso é bom.

Honoria cutucou o marido, parecendo agitada. Lembrou-se e perguntou a respeito de Finnegan. Enquanto Rob explicava as providências tomadas, Bruce aproveitou a deixa para se aproximar. Sorriu de leve.

- Como você está?

Moira balançou a cabeça.

- Eu não sei. Já é a segunda vez – ela o observou com o canto dos olhos. – Não me contou que você e seus pais eram conhecidos da minha família.

- Robert é meu padrasto. E eu não fazia idéia até encontrar seu avô em pessoa, há alguns meses atrás.

- Onde?

- Em um aniversário. Do Rob.

- Por que não me contou?

Bruce deu de ombros.

- Eu não faço idéia.

Quelq'un m'a dit

Era uma figura estranha, parada no corredor da sala de espera, com seu cabelo com cachinhos (claramente tingidos, porque as sobrancelhas não combinavam com o tom castanho-claro da cabeça) e seus olhos cor de mel. A iluminação da manhã contra o rosto dela mostrava que era uma mulher bem-cuidada, mas que já tinha passado por poucas e boas.

Moira se levantou quando ouviu chamarem seu nome. Estava com as cartas no colo, vendo uma foto que estava anexada em um dos envelopes – dois homens posando na frente de um pub, no começo dos anos 1970. Um deles era Edward, com certeza. O outro, Moira não conhecia: um homem magrelo de olheiras escuras e cabelo desbotado.



- Você é a Moira, não é? Claro que é, você é a cara da sua mãe! Eu vim assim que o Bruce me disse... Pobre Edward! Ele está melhor?

- Meu avô está na mesma, nem pior nem melhor... Desculpe, senhora, eu acho que eu não a conheço...

- Você não iria se lembrar de mim. A última vez que eu lhe vi, você estava no colo da sua mãe em uma festa. Eu conheço o seu avô há muito tempo. Meu nome é Honoria Brown.



Moira estendeu a mão, ainda com uma expressão confusa no rosto.


- Prazer, senhora Brown...

- Pode me chamar só de Honoria, meu bem. Então, como eu lhe dizia, eu vim assim que o Bruce me disse o que houve...

- Bruce? – Moira franziu a testa – Desculpe, eu estou ainda mais confusa.

- Bruce, meu filho. Certamente ele lhe disse...?



Moira olhou para o chão, sentindo o mundo girar um pouco mais depressa. Ou Bruce era muito parecido com o pai ou então era adotado – porque entre Honoria e ele não existia nada em comum.

Sunday, November 12, 2006

De volta a Sandringham

- Bem, é claro que é horrível, sim – Rob sentou-se na poltrona da sala. – E todos nós rezamos para o melhor. E, a sua mãe, você sabe como ela é...

Acabara de chegar de viagem para descobrir que Honoria se fora, no último trem, para Norwich. Bruce chegara pouco antes do padrasto, fazendo a mesma constatação. Ainda em Londres, havia ligado para mãe, relatando o que acontecera a Edward, tentando soar o mais calmo possível. “No hospital, em Norwich”, “Mas, Bruce”, “Espere por mim”, “Mas eu”, “Espere por mim”. Winnie, a cozinheira da casa, fizera o favor de avisá-lo de que não, Honoria não tinha esperado, mas que havia sorvete no freezer.

- Bem – Rob colocou a mala no colo, abriu, fechou, e não soube o que fazer com ela. – Acho que o correto seria eu acompanhá-la, então. Sabe em que hospital ele está?

- Agora sei. Minha mãe deixou um recado. Ela ligou para meio mundo.

- Imagino que sim. Será melhor levar uma muda de roupas? Onde está sua bagagem?

Bruce olhou para os pés. Onde estava?

- Eu não trouxe.

- Não? Ora, parece que foi mesmo uma coisa de última hora. Pobre Edward. Você acha que ele...

- Eu não sei – Bruce respondeu rapidamente. – Segundo a neta dele, não é a primeira vez que ele é internado.

Rob balançou a cabeça, a aparência esgotada. Depois, virou-se para Bruce, curioso.

- É mesmo. Não havia me perguntado até agora como logo você foi saber de toda essa história. Não imaginava que conhecesse a neta dele.

- Eu conheço. Ela trabalha comigo. Mas ainda não sabe que eu também conheço o avô dela.

- Não?

- Ainda não tive a oportunidade de contar.

- Entendo. Quase. Winifred, se Finnegan ligar, avise-o de que deve ligar para o meu celular, ou o da mãe dele.

Friday, November 10, 2006

Duas Cartas

"(...) É bem verdade que eu não posso contra a cabeça-dura do velho Harris. Já foi uma decepção tremenda para ele o fato do único filho decidir se tornar um mísero professor do que seguir carreira militar (e você vai me dizer com aquele arzinho engraçado, "chacun a son goût!", mas você diz isso porque não tem o Sargento Harris como pai). Agora, ainda por cima, eu decidi me casar com uma garota - na opinião dele - sem dinheiro, sem sobrenome e sem modos.
Sinceramente, primo? O velho pode ir para o quinto dos infernos. Entre ele e a Stella, eu vou ficar com a Stella. E Deus que me ajude com o resto!"

(trecho de carta de Arthur Harris a seu primo, John Saville Harris, fevereiro de 1977)

"(...) Não há nada que eu possa dizer. Desejo sinceramente que o senhor suma de nossas vidas. Uma vez que o senhor deserdou juridicamente Arthur, não creio que tenhamos nada mais a ver com sua casa ou sua família. Por favor, pare de nos procurar ou eu vou chamar a polícia."

(trecho de carta de Stella Smith-Morris para o Sargento Anthony Harris, maio de 1980)

***

Moira observou os pacotes de cartas, amareladas e desbotadas, amarradas em grupos com fitas de cetim. Os tesouros de Edward Morris: as cartas trocadas por Arthur e Stella, além das cópias e rascunhos das correspondências que eles trocaram com outras pessoas.

Era a primeira vez que ela lia aquelas cartas. Até aquele momento, não sabia que seu outro avô era um sargento do Exército, ou mesmo que seu pai tinha sido realmente deserdado por ter se casado com uma mulher "sem dinheiro, sem sobrenome e sem educação".

Estava sozinha na sala, tudo escuro do lado de fora. Não podia passar a noite no hospital - os médicos não permitiam. O jeito foi seguir sozinha para a casa do avô, a casa onde ela fora criada. Sentia-se como se um sapo tivesse se alojado dentro de sua garganta.

Quando Edward partisse, ela estaria sozinha de vez. E aquilo a aterrorizava.

As cartas estavam em cima da mesa quando ela chegara. Parece que Edward estava lendo-as quando teve o ataque. Sabe-se deus o que aquelas cartas traziam para ele. Para ela, era só uma grande confusão. Tentar fazer um retrato mental de seus pais por meio dos textos era difícil, mas era o único esporte que lhe ocorria.

O telefone celular tocou. Moira olhou para o aparelho sem saber se atenderia. Por fim, aceitou a ligação.

- Alô?... Ah, olá, Bruce. Tudo bem por aí?... Como assim? Você está aonde?!

Wednesday, November 08, 2006

O princípio

Bruce olhou para o próprio prato, um pouco confuso. Depois, olhou para Rose, que aguardava por uma resposta. Ela não comeria ou o deixaria ter paz para colocar os pensamentos em ordem enquanto não se satisfizesse.

- Um amigo meu – Bruce disse.

- Amigo?

- O pai dele foi internado. Ataque cardíaco.

- Que horror – Rose ergueu as sobrancelhas finas. – Ele está morrendo?

Bruce deu um sorriso nervoso, com o canto dos lábios.

- Não sei, Rose. Você é direta. Espero que não.

Rose tomou um gole de refrigerante dietético.

- Todos esperamos.

Bruce assentiu e pegou o garfo. Havia, não sem surpresas, perdido a fome. Se Rose notou seu incômodo, preferiu ignorá-lo. Não voltaram a conversar até terem saído do restaurante – Bruce pagou a conta.

Quando retornavam para a loja, ele estacou no meio do caminho.

- O que foi? – Rose perguntou.

- É melhor eu ligar para a minha mãe.

- Ouviu o que acabou de dizer?

- O homem que foi internado é um amigo dela. Seria bom que eu a avisasse. Se é que ela já não foi.

- Bem, não pode ligar do celular?

- Talvez eu precise ir para Sandringham.

- Hoje? – Rose parecia decepcionada. – Viajar hoje?

- É uma emergência, Rose. Não se tem controle sobre isso.

Rose olhou em volta, para os passantes. Bruce se perguntou acaso ela teria coragem de começar ali, no meio da calçada, mais uma discussão, e descobriu que não tinha paciência para se explicar; antes dar as costas e deixá-la falando sozinha. Mas Rose, ao contrário, pareceu se encolher, e deu de ombros.

- Ótimo – ela balançou a cabeça. – Ótimo, Bruce. Faça como quiser. E me ligue, caso mude de planos.

- Não estou fazendo planos!

- Ainda assim, me ligue.

Sem se despedir, ela o deixou para trás.

Uma conversa telefônica

Bruce levou Rose para almoçar em um restaurante minúsculo numa esquina da Oxford Street. Ele parecia ainda mais monossilábico do que de costume, o que não era de grande ajuda para acalmar os nervos da namorada, que torcia as mãos de nervoso na frente de sua salada.


- Você acha que a festa de inauguração vai dar certo?

- Claro que vai - Bruce forçou um sorriso.

- Você não parece muto certo...

- Eu só estou exausto. Muito exausto.

- Esse teu chefe te explora!


Seria inútil explicar o que tinha acontecido - nem mesmo ele entendia. E Rose, coma cabeça cheia de babados e esperanças, não teria tempo para compreender ou aceitar aquele arremedo de ficção científica no qual seus dias tinham se transformado.

O celular tocou, estridente. Rose olhou para o aparelho como se ele fosse radioativo.

Bruce atendeu, com medo que fosse Wilcox.


- Alô?

- Bruce, sou eu.


Era Moira. Voz distante e fria. Som de estação de trem ao fundo.

Por um instante, um tenso instante, ele podia jurar que ela estava falando da estação fantasma de West Rotherhithe. Mas o som do auto-falante falava em trens seguindo para Manning Tree, Ely, Cambridge - o leste do país. Ela, decididamente, não estava em uma estação do metrô.



- Ahn, oi. Onde você está? Mal consigo te ouvir!

- Em Liverpool Street. Na estação de trem, quero dizer. Você pode avisar o Wilcox que eu não vou trabalhar amanhã? Eu tenho que ir para casa.

- Norwich? O que foi que houve?

- Meu avô foi internado... Ele teve um ataque cardíaco... Eu tenho que ir... A coisa está meio feia, precisam de mim por lá.

- Ele está tão mal assim?

- Já é a segunda vez que ele é internado. O prognóstico não é dos melhores. Enfim! Eu vou tentar voltar assim que for possível - eu não sei quando, meu avô só tem a mim como família. Você avisa o professor?


Quando Bruce desligou o telefone, Rose estava espumando de raiva, de maneira discreta mas visível. Afinal, ela deixava recados e mais recados e ele nunca se dignava a atender - e de repente lá estava ele, demonstrando mais atenção com um estranho do outro lado da linha do que com ela, ali, sentada bem à sua frente.


- Quem era?


Bruce colocou o telefone no bolso. Não saberia dizer porque tinha vontade de levantar dali e correr para a estação de trem, para Norwich, para longe, bem longe.

Tuesday, November 07, 2006

Em Oxford Street

Rose revistou as roupas penduradas em cabides brancos e delicadinhos (como a visão de uma garotinha amarrando os tênis cor lilás), querendo encontrar algum defeito com o qual pudesse se ocupar. As peças da nova coleção estavam intactas, contra seu melhor esforço. Annabeth, apoiada no balcão, batia o salto do sapato no piso brilhante, parecendo impaciente.

- O que está fazendo aí, Rose? – ela perguntou.

Rose não se virou para responder:

- Absolutamente... – ela mordeu os lábios, zangada. – Tentando encontrar alguma coisa descosturada.

- Está brincando, não é?

- Não. Achei uma blusa desfiada.

- Rose, o que estava fazendo no quartinho dos fundos? Há cinco minutos atrás.

- Arrumando o estoque, é óbvio.

- Não acha que a inauguração da loja está revirando a sua cabeça? Um pouco, pelo menos.

Os dedos de Rose deslizaram pelas roupas. Ela se voltou para Annabeth.

- Como você esperava que eu ficasse?

- Esqueça, foi um comentário estúpido – Annabeth suspirou, entediada, brincando com uma peninha que havia ficado grudada em seu vestido. Depois de algum tempo, ainda ouvindo Rose trabalhar, ela ergueu os olhos para a vitrine, curiosa. – Rose.

- O que é?

- Seu namorado está do lado de fora. Ou um homem que se parece muito com o seu namorado.

Rose alisou a saia que usava. Ela viu Bruce parado na frente da loja, as mãos nos bolsos, desamparado como um turista que acabara de se perder do resto da excursão.

Caminhou até ele.

- Então aí está você.

Bruce sorriu levemente.

- De tempos em tempos eu abandono o covil.

- Sim, quanto bom-humor. Você foi grosseiro da última vez em que nos falamos.

- É verdade. E, por isso, eu gostaria de pedir desculpas.

Os dois ficaram em silêncio. Bruce olhou para a faixa que atravessava a vitrine.

- Posso ver que hoje é o dia da inauguração.

- Está convidado, se faz alguma diferença.

Bruce assentiu.

- Obrigado por mais uma prova de magnanimidade.

Rose cruzou os braços.

- O que vai fazer agora?

- Comer, imagino – Bruce deu de ombros. – Não há comida no meu apartamento, exceto um cereal com a validade estourada.

- Vou pegar meu casaco e levá-lo até um restaurante.

- Não tem trabalho a fazer?

- Annabeth vai ficar feliz por se livrar de mim. Espere aqui.

Monday, November 06, 2006

Alors Souris

Et dans 150 ans, on s'en souviendra pas
De ta première ride, de nos mauvais choix,
De la vie qui nous baise, de tous ces marchands d'armes,
Des types qui votent les lois là bas au gouvernement,
De ce monde qui pousse, de ce monde qui crie,
Du temps qui avance, de la mélancolie,
La chaleur des baisers et cette pluie qui coule,
Et de l'amour blessé et de tout ce qu'on nous roule,
Alors souris.


(E daqui a 150 anos, não vamos nos lembrar
da sua primeira ruga, das nossas escolhas ruins
da vida que nos ferra, de todos os vendedores de armas
dos caras que votam as leis lá no governo
deste mundo que empurra, deste mundo que grita
do tempo que segue, da melanciolia
do calor dos beijos e desta chuva que corre
e do amor ferido e de tudo que nos rodeia
então sorria).

-- Raphaël, "Et Dans 150 Ans"



Moira estava estendida no sofá, telefone colado na orelha, escutando o barulho vindo da estação de trem. A bem da verdade, não sabia o motivo exato de ter decidido telefonar para Bruce. Tinha levado o professor de volta para o Hampton e depois disso estava tão cansada que escutar uma voz conhecida do outro lado da linha lhe parecia a única coisa sana a fazer.


- A bem da verdade, o fim do mundo está sempre nos perseguindo – Moira completou seu pensamento – Principalmente quando se trabalha para um tipo como Wilcox.

- Você não está de todo errada.

- Devia ter gravado isso para a posteridade. Bom, eu vejo você amanhã?

- Você vai trabalhar amanhã?

- Bom, alguém vai ter que vigiar aquele maluco! Será que tem mais algum evento na vida dele para alterar?

- O próprio nascimento, talvez, o que abre uma série de possibilidades – Bruce resmungou.

- Você sabe que isso é um paradoxo interessante, mas eu não vou ficar discutindo isso pelo telefone... A conta vai parar na Lua se eu começar. Até amanhã!


Mal colocara o telefone no gancho, o aparelho soara novamente. Moira atendeu, com medo que fosse Wilcox.

Não era Wilcox. Era uma voz feminina, grave, portadora de más notícias.


- Por favor, a senhorita Harris? Aqui é do Hospital Geral de Norwich... Você é a neta de Edward Smith-Morris? Ele foi internado agora há pouco...

Saturday, November 04, 2006

Tia Phyllis

Wilcox colocou a xícara vazia sobre a mesa. Olhou para a parede oposta durante alguns minutos, sem nada dizer; o que, na opinião de Bruce, levando-se em conta do tipo de idéia que o professor costumava gerar durante seus silêncios reflexivos, era perturbador.

- É incrível – Wilcox murmurou. Piscou em seguida, emergindo do transe. – Realmente incrível. Mas meu empreendimento tem, afinal, futuro, como acaba de provar o meu outro eu. Salvar-me da morte! Quem diria! Ah, o trocadilho não foi intencional.

- Obrigada pela consideração – Moira disse, olhando para as mãos sujas.

- Não sejam tolos. É claro que sou grato aos dois. Mas ainda mais grato à minha própria genialidade. Eu sabia – Wilcox tomou a xícara e tornou a levá-la aos lábios, esquecendo-se de que já não continha nada. – Genial.

- Incrível, Wilcox. Mesmo – Bruce esfregou o rosto. – Aliás, já que genial é a palavra em vigor, tenho uma idéia: Por que você não entra na máquina mais uma vez e faz uma viagem até a era Jurássica, para compartilhar seu conhecimento com as, você sabe, formas de vida mais precárias, que estão, tenho certeza, ansiosas por receber todo o seu conhecimento. Enquanto isso, eu vou tomar um banho. E espero encontrar uma cama macia e limpa onde possa relaxar e me esquecer do que você nos fez passar. De novo.

Wilcox franziu o cenho.

- Está reclamando do quê? No fim, continuei casado com a velha bruxa.

- Se essa máquina do tempo deve ser usada – e eu vou frisar o se, caso ninguém tenha entendido –, melhor que não seja em benefício próprio – Bruce lançou um olhar de esguelha a Moira. Ela não disse nada.

**

O apartamento estava com um estranho cheiro de mofo, depois de dois dias trancado. Bruce acendeu a luz da sala. Rose havia deixado alguns recados na secretária eletrônica. Ele não se deu ao trabalho de respondê-los. Precisava, antes disso, formular A Melhor Desculpa Do Mundo.

Logo depois de sair do chuveiro, os cabelos pingando, sentou-se no sofá. Honoria havia mandado mais uma caixa com bugigangas, daquela vez antigos vídeos caseiros. Uma das fitas dizia: BRUCE ANIVERSÁRIO 18 ANOS. Ele sorriu, não sem ironia. Encontrou, ainda, gravações de algumas obras de edifícios em Londres (fitas de Rob, deixadas ali por engano) e a primeira visita de Finnegan a uma praia.

Optou pela fita do aniversário, corando em antecipação ao constrangimento que sentiria. Não mudara muito desde aquela época, pensou – o Bruce mais jovem era mais pálido e mais ingênuo. Não tinha perspectivas tão elevadas, mas talvez fosse mais crédulo com a possibilidade de um destino honroso. Máquinas do tempo, porém, não figuravam no contexto.

No vídeo, uma senhora se aproximava e lhe tomava o braço, sorrindo para a câmera. Bruce imitou a expressão confusa de seu eu de dezoito anos, incapaz, mais de meia década depois, de reconhecer a mulher que o abordara. Quando Finnegan apareceu, pequeno, chorando porque não queria ficar com as roupas de festa, o telefone tocou.

Bruce parou o filme.

- Alô? – ele atendeu. No mesmo instante segurou o bocal, fazendo uma careta. Se fosse Rose, estaria perdido.

- Como estão as coisas? – reconheceu a voz de Moira. Olhou para a tela congelada, vendo-se obrigado a posar para uma foto em grupo com alguns parentes de Rob, e aproximou o rosto do telefone.

- É você.

- Costumo ser. Repito, como estão as coisas?

- Estranhas – Bruce respondeu. – Como está Wilcox?

- Estava bem, quando eu o deixei. Prometeu que não voltaria a usar a máquina por hoje, mas você sabe que... bem, é impossível contar com a palavra dele.

- Não me diga – Bruce se ajoelhou na frente da televisão e desligou o vídeo. - Acha que deu certo? Acha que resolvemos o problema?

- Bem, Wilcox parece inteiro. Bruce, interrompo alguma coisa?

- Não. Eu estava olhando presentinhos que a minha mãe mandou.

- Biscoitos?

- Vídeos. De quando eu era adolescente.

- Ah – Moira riu, do outro lado da linha. – Estranho pensar que você já tenha sido um.

- Mesmo?

Bruce recolheu a caixa e a depositou em uma das estantes. Olhou para os pés descalços e úmidos.

- Moira? Ainda está aí?

- Sim.

- Por que me ligou? – viu-se perguntando, antes mesmo de pensar a respeito.

- Como?

- Eu consigo pensar em certos motivos pelos quais você me ligaria, mas nenhum deles é animador. Sou forçado a perguntar: o que houve? O que aconteceu agora?

Moira ficou em silêncio.

- Não houve nada. Por que está sempre esperando pelo fim do mundo?

Bruce deu uma risada nervosa.

- E eu não tenho motivos para me preocupar?