Thursday, May 24, 2007

Caravana

- Honoria – Bruce respondeu, um pouco surpreso. Com a morte de Edward, não imaginava que Nicholas ainda fosse lembrado no círculo familiar.

- Eu conheci seu pai, quando éramos jovens. Há muito tempo que não o vejo.

- Provavelmente não acharia grande diferença se o visse agora.

Moira interrompeu:

- Já está anoitecendo.

- Se não se incomodam, eu gostaria de acompanhá-los – Stella disse. – Já estou adiando uma visita a Norwich há alguns meses.

Bruce e Moira se entreolharam.

- Se a senhora faz questão, mãe...

- Ótimo. Vou ligar para Roger e já venho. É rápido.

Quando Stella se foi, Bruce baixou o tom de voz.

- Será que é uma boa idéia?

- Eu não sei – Moira respondeu.

- O Prof Wilcox disse... – Bruce pretendia falar das vezes em que Wilcox visitara Nicholas, mas lembrou-se de outra coisa: – Espere. Será que o Prof. Wilcox está vivo?

Moira ergueu as sobrancelhas.

- Se o Wilcox do nosso presente morreu antes que ficássemos presos aqui, talvez o Wilcox deste presente ainda esteja vivo.

- Talvez. Mas como o encontraríamos? Suponho que cientistas como Wilcox não sejam muito populares nos dias de hoje.

Stella reapareceu, cessando a conversa. Ela sorriu.

- Ah, pronto. Tudo resolvido. Vamos?

Outro Ivanhoé

- Então Nicholas está vivo?

- Está. E sumiu em algum lugar de Norwich.

- Eu estou até com medo de pensar no que aconteceu, Bruce.

- Não menos do que eu!


Moira olhou pela janela. O trânsito na região de Liverpool Street tinha diminuido um pouco. Bruce, caído no sofá, parecia ter sido jogado por uma onda no meio da sala - pálido, exaurido, transtornado.

A campainha soou. Bruce sentou-se direito, começando a tremer. Pensava em ma invasão, em agentes do governo, em terminar como o personagem de Stephen Fry em V de Vingança. Mas quem estava do outro lado da porta era Stella, com um pacote de comida nas mãos que cheirava a açúcar candy e baunilha.


- Moira, ma petite, eu estava passando na padaria e resolvi trazer uma torta... - Stella olhou para Bruce, sentado no sofá - Ah, olá, você.

- Olá, senhora - Bruce cumprimentou.

- Mais qu'est-ce que se passe ici? - Stella encarou Moira, passando o pacote de aroma doce nas mãos da filha - O moço te trouxe para casa de novo?

- Não...Não desta vez... Mãe, o pai do Bruce está com problemas. Só isso.

- Ah. Está no hospital?

- Não, não. Ele...

- Sumiu - Moira completou - Completamente.


Stella voltou a olhar para Bruce, desta vez com um semblante compadecido. Deus sabia o que ela estava pensando que aconteceu, mas ela parecia compreender a dor do sumiço. Moira e Bruce se entreolharam em silêncio - as defesas da mãe de Moira tinham caído.


- Temos que ir para Norwich atrás dele, antes que algo pior aconteça - Moira disse.

- Norwich! Você é de Norwich também? - Stella parecia feliz por um minuto.

- Meu pai é. Nicholas Glendoning, a glória do The Trooper.



Stella arregalou os olhos. Por um instante, pareceu quase desmaiar.


- Nicholas Glendoning? Glendoning? Ivanhoé? - Stella abriu um sorriso triste - Diz uma coisa, garoto... Você é filho da Honoria ou de outra garota?

Poeira

Bruce não esperou pelo Estranho que o intimidara em classe. Tampouco comunicou à Moira o ocorrido; achava que ela já tinha sua própria cota de problemas para digerir.

Quando abriu a porta de casa, o apartamento parecia morto. Jessica dormia no sofá, mais uma caixinha de lenços de papel largada sobre a mesa de centro. Bruce caminhou silenciosamente até o quarto.

Seguiu-se o Conflito Interno, Bruce abrindo e dobrando a folha de papel que arrancara de uma lista telefônica. O nome de seu pai ainda estava gravado ali, recusando-se a desaparecer.

A porta se abriu.

- Já voltou? – perguntou Jessica, colocando a cara amassada pelo sono para dentro. – Sua mãe ligou.

Bruce guardou a folha dentro do bolso do casaco.

- É mesmo?

- Ela pediu para que você ligasse de volta.

Eu não sei o telefone da minha mãe, Bruce pensou. Como posso dizer isso a ela? Será que Rob ainda mora no mesmo lugar?

E, então, como se um raio houvesse atingido a cabeça de Bruce, as coisas ficaram insuportavelmente claras.

Será que Rob ainda existe neste presente?

- Bruce?

- Sim, eu vou ligar.

Bruce decidiu arriscar suas chances:

- Ela disse como está o meu pai?

Jessica enrugou a testa, pensativa. Sua expressão parecia mais séria.

- Ela não soou muito satisfeita – disse; e, sem maiores explicações, deixou o quarto.

Bruce ficou olhando para a porta, ouvindo o caminhar das muletas. Seus pais ainda eram casados ou não? E Rob?

Ele sentiu o estômago embrulhar.

E Finnegan? Finnegan também havia se transformado em poeira cósmica, como o Outro Bruce?

Decidiu que não podia permanecer daquela forma. Deixou o apartamento sorrateiramente, enquanto Jessica via televisão. Voltou após dez segundos, pegou o telefone e perguntou:

- Onde está minha agenda?

Jessica voltou-se para ele.

- Na sua pasta, eu suponho. Que, por sinal, não vejo há algum tempo.

Bruce Sobressalente levara a pasta e a agenda telefônica para o buraco negro.

- Não sei o número da minha mãe – Bruce disse, tentando parecer seguro. Muitos homens não sabem o telefone da própria mãe. Estatísticas poderiam provar. – De cor.

Jessica não pareceu surpresa. Ela informou o número. Bruce discou e sentou-se em uma das cadeiras da mesa de refeição. O telefone tocou duas vezes antes que alguém atendesse.

- Alô – era Honoria.

- Mãe – Bruce disse. E não conseguiu mais abrir a boca.

- Ah, Bruce. É você. Que bom que finalmente o encontro em casa. Onde esteve, ontem?

- Preso. No... metrô.

- O quê?

- Como vai, mãe?

- Bem. Seu pai não dormiu em casa, noite passada.

Bruce empalideceu.

- Ele me ligou de madrugada e não entendi nada do que disse. Não voltou a ligar, tampouco apareceu.

Não houve resposta.

- Bruce, está aí?

- Estou.

- Eu apreciaria se você passasse no Trooper por mim. Ou talvez na casa daquele homem, Kirk. Eu realmente não tenho paciência para bancar a babá do seu pai depois de quase trinta e cinco anos de casamento. Bruce?

- Sim.

- Sim?

- Sim, eu farei isso... o que me pediu. Quem é Kirk?

- Ah, o que eu não daria para não saber a resposta a essa pergunta – e Honoria desligou o telefone.

Wednesday, May 23, 2007

Vivre ou Survivre


Et pourtant il faut vivre
Ou survivre
Sans poème
Sans blesser tous ceux qui l'aiment
Être heureux
Malheureux
Vivre seul ou même à deux


(E no entanto é preciso viver
ou
sobreviver
sem poesia
sem machucar os que lhe amam
Ser feliz
infeliz
viver sozinho ou mesmo a dois)

--Daniel Balavoine, "Vivre ou Survivre"



Moira tinha uma aula vaga no meio da manhã e decidira sentar-se um pouco do lado de fora da sala dos professores. Sentia-se tonta e cansada, mais do que em qualquer viagem que tivesse feito dentro do vagão de Wilcox.

Então era aquela a sensação de morrer? Porque sentia-se como uma intrusa em uma história falsa. Bruce tinha razão - a Moira que tivera o amor de Stella e Arthur e Roger não era ela, era uma outra, que a maquinaria de Gabriel Stuart tinha destruído.

Não era justo com ninguém. Nem com a Moira órfã, nem com a outra, recém-destruída.


- E então, Moira?


Ela ergueu o rosto. Peter estava ali, observando-a. Não estava uniformizado. De qualquer forma, parecia um pouco velho para ser aluno do ginásio, embora não fosse ainda um adulto.


- E você é...?

- Me chamo Peter.

- É um bonito nome.

- Minha mãe também achava.


Ele colocou a mão na cabeça de repente. Moira sabia o que era aquele gesto - uma dor de cabeça infernal, como a dos viajantes do tempo. Sem perceber o que fazia, levantou-se depressa e agarrou o garoto pelos ombros, amparando-o.

Eles se encararam e Peter abriu um sorriso desarmado.


- Você sabe que isso dói pra caramba, não sabe?

- Como você chegou aqui?

- Eu não vou ter tempo de explicar agora.

- Diz pelo menos se você veio do futuro. Gabriel Stuart...

- Eu sei. Eu sei de tudo. Tente não entrar em pânico. Eu vim...


Outra onda de dor veio e ele se agarrou aos braços de Moira. O tempo era mais curto do que ele tinha programado.


- Malditos buracos no tempo. Você me espera?

- Aonde, meu Deus?

- Eu te acho. Não se preocupe. Eu sei bem mais do que você imagina.


E, como poeira, ele desapareceu por completo.

A Cidade dos Amaldiçoados

Bruce espiou a sala de aula. Os alunos estavam sentados, imaculados feito anjinhos. Todas as crianças da cidade vestiam o mesmo uniforme azul.

Tomando coragem, Bruce girou a maçaneta e entrou. Foi acompanhado por olhares inquisidores. Abriu uma das apostilas.

- Vamos falar de...

Ocorreu-lhe que, para sua própria segurança, melhor seria manter-se afastado de assuntos atuais.

- Vamos falar de Guy Fawkes – Bruce disse, rezando para que Gabriel não tivesse ido tão longe.




- Foi horrível.

O intervalo durava trinta minutos. Bruce estava sentado num canto isolado da sala dos professores, parecendo, sob todos os aspectos, miserável. Moira se aproximara.

- Era como se eu estivesse naquele filme em que as criancinhas da cidade são aberrações, e onde Christopher Reeve se sacrifica em uma explosão para impedi-las de dominar o mundo. Sempre achei que fosse um filme obrigatório para todos os professores.

- Não quer comer alguma coisa? – Moira perguntou.

- Não trouxe nada. Eu nem ao menos tenho dinheiro. Tentei encontrar um cofre secreto em casa, ou notas enroladas dentro de um pé de meia, mas tive receio de que minha esposa se convencesse de que eu estou louco – ele fez uma pausa, dando-se conta de quão estranho era dizer “minha esposa”. – Eu percebi uma coisa.

- O quê?

- Nós matamos nossos sobressalentes.

Moira ergueu as sobrancelhas.

- O Bruce e a Moira que viviam aqui. O Bruce que era casado com a Jessica, a Moira que era a irmã mais velha do Roger. Eles não existem mais. Desapareceram. Nossa existência neste presente acabou por eliminar a deles.

Ele balançou a cabeça.

- Sempre que Jessica olha para a minha cara, sabendo que algo está diferente, não consigo deixar de pensar que, mesmo sem ter a intenção, matei o marido dela. O Bruce que ela amava se perdeu em algum, não sei, redemoinho do tempo, e logo ela descobrirá que sou apenas o impostor.

Moira pareceu perturbada. Era difícil admitir que a vida onde sua família era viva e feliz pertencia à outra mulher.

- Há mais uma coisa – Bruce começou a dizer, mas não prosseguiu. O sinal tocou.




A sala de aula estava vazia. Bruce pegou o apagador e começou a limpar a lousa. Ouviu a porta se abrir.

- Vamos passar para a página 120 – ele informou, sem a menor convicção.

- Parece bom para mim – alguém respondeu, e a voz não pertencia a uma criança.

Bruce se virou. Um rapaz de cabelos castanhos estava ocupando uma das carteiras, pernas longas sobrando para os lados. A julgar pelo estado de sus roupas, parecia ter passado por maus bocados.

Bruce achou que o conhecia de algum lugar.

- Desculpe – disse. – Quem é você?

O estranho estalou o pescoço.

- Peter – ele respondeu. - Não entre em pânico.

- Peter – Bruce repetiu, desconsiderando o significado da recomendação.

Os alunos começaram a entrar. Encontrando o estranho, no entanto, estacaram.

- Você está sentado no meu lugar – um garotinho o acusou, após alguns segundos de silêncio.

Peter olhou para o garoto como se visse, ali, a mais inconveniente das criaturas.

- É mesmo? O que vai fazer? Me bater?

Antes que ouvisse mais protestos, Peter se levantou. Bruce notou que ele mancava um pouco.

- Vejo-o depois da aula, professor – Peter disse, retirando-se.

O medo de que estivesse sendo seguido por um agente do governo tomou conta de Bruce. O apagador tremia em sua mão direita.

- Vocês o conhecem? – Bruce perguntou.

Os alunos balançaram negativamente a cabeça.

No Pátio

Moira foi para a escola de ônibus com Roger, que descia um ponto antes. Descobrira que era professora de Matemática do ginásio, como o pai antes dela. O pai, aliás, era professor aposentado ("você lembra, o emérito primeiro-ministro mandou que ele ficasse em casa", Roger resmungou). A mãe ainda dava aulas em outra escola.

Foi no pátio que Moira encontrou Bruce. Olhou em volta - ninguém estranhou que os dois se aproximassem.


- Professor também? - ela perguntou em voz baixa.

- Sim. Adivinhe.

- História? - Moira não conseguia imaginar outra profissão para o amigo.

- Eu estou me sentindo péssimo - Bruce rangeu os dentes - Você já leu os livros de História?

- Eu mal tive tempo de assimilar as mudanças mais próximas.

- Estamos numa teocracia, Moira. Numa ditadura cubana! Aliás, nessa alteração de tempo Fidel Castro não existe mais, é algo interessante. Estamos numa república praticamente totalitária! E Gabriel Stuart, o nosso Gabriel, é a figura central. Tipo Atatürk na Turquia. Ou, sei lá, Saddam Hussein.

- Eles ainda existem?

- Eu não fui conferir ainda.


O primeiro sinal tocou, alucinado. Alunos começaram a correr. Professores dirigiam-se à sala de aula.


- E a senhora Glendoning?

- É ruiva. Chama-se Jessica. É enfermeira.

- Você se arranjou com uma enfermeira?

- Não era meu fetiche, se é isso o que você quer saber.

- Acredite, eu não quero - ela deu de ombros - Porque pelo visto continuo tão encalhada quanto antes.

- Melhor que ter que dividir a cama com uma completa estranha, eu acho.

Monday, May 14, 2007

Jessica

Bruce tocou a campainha apenas uma vez. Teve ímpetos de sair correndo, mas a porta foi, então, durante o tempo que gastou lutando contra os próprios princípios, aberta por uma moça ruiva. Ela sorriu como uma criança teria sorrido caso encontrasse uma cesta cheia de filhotinhos à sua mercê, no meio do corredor.

- Ah, aí está você – ela disse, e o beijou.

Sou casado, Bruce repetiu para si mesmo, sentindo lábios desconhecidos e um perfume agradável, picante; o cheiro que ruivas deveriam ter, na sua imaginação e na do bom e velho Charlie Brown.

- O que fez com as suas roupas? – a nova Sra. Glendoning perguntou.

- Nada – Bruce respondeu, abatido.

- Ligaram para casa dizendo que você não apareceu no colégio – a mulher abriu um pouco mais a porta, com certa dificuldade, e somente naquele instante Bruce percebeu que ela se movia com a ajuda de muletas. Uma das pernas estava enfaixada.

Bruce entrou, hesitante. Parecia estar em uma versão mais sombria e apertada do apartamento em que vivia no seu extinto presente.

Não havia sinais de Rose. Nenhum babado esquecido, nenhuma tonalidade deslocada sobrepondo-se ao e ofendendo o estilo quase rústico de Bruce. A presença da nova ocupante era percebida em detalhes menores: alguns livros de anatomia repousando na mesa de centro (Bruce tinha certeza de que não lhe pertenciam), um xale bordô sobre um dos braços do sofá, chinelos de pano pintados de azul-claro. Uma embalagem de biscoitos, vazia.

Ele respirou fundo e seguiu a esposa até a cozinha.

- Quer alguma coisa? Eu estava preparando um pouco de chá – a cascata de cabelos vermelhos falou, mas Bruce não conseguiu responder.

- Jessica – ele disse, em voz alta, testando.

Jessica olhou para ele.

- Sim?

Bruce piscou, balançando a cabeça.

- Nada.

Jessica deixou a chaleira apitando. Parecia preocupada.

-Você está bem? Parece fora do ar.

Bruce abriu a boca para tentar se explicar. O que saiu foi:

- Eu realmente gostaria de tomar um banho.

Os dois se encararam. Jessica sorriu de leve.

- Bem. Você sabe como chegar até o banheiro.

O banheiro era azul e iluminado. Havia uma banheira pequena e um chuveiro menor ainda. Bruce girou a torneira e deixou que a água fria corresse pelo box. Vestido, baixou a tampa do vaso sanitário e sentou-se sobre ela.

Permaneceu assim durante cinco minutos, pensando em como remediar a situação. Sentiu uma ponta de remorso por Jessica. Ela era, afinal, tão vítima daquele acidente quanto ele.

O homem que queria ser rei

Bruce saiu, ainda atarantado, em direção ao seu novo "lar" - Moira conseguia imaginar as aspas em luz neon pulando em cima da palavra. Um lar que ele não conhecia. E ela sentada, vendo televisão ao lado de um garoto com o código genético parecido com o dela e que não existia até alguns dias atrás.

O telejornal mostrava as coisas de sempre, mesmo em tempo alterado: o futebol, as notícias do mundo. Moira sentiu falta de reportagens sobre o Parlamento, sobre o primeiro-ministro. Comentou por alto com Roger:



- Sinto falta do primeiro-ministro.

- Imagino que eu sentiria falta, se tivesse conhecido algum - Roger deu de ombros - Nosso querido presidente não nos faria a menor falta.

- Gabriel Stuart?

- E tem outro? No fundo, ele derrubou a monarquia para se tornar rei ele mesmo, o puto. Deve ser tão divertido, ter eleições, não acha? Poder escolher! Poder berrar no meio da rua que você não gosta de alguma coisa. Deve ser tão legal...



Moira engoliu em seco. Lembrou-se de Wilcox, em seus instantes finais, gritando contra Gabriel, desesperado por causa do roubo que lhe custara todos os plantos. Vocês precisam ficar... porque... ele vai voltar.... e vocês precisam ficar e mudar o que ele fez. Ele vai voltar...

Sentindo o peso da responsabilidade lhe caindo como uma armadura, fez uma festinha no cabelo espesso do irmão. Espera até o Bruce saber dissso!

Sunday, May 06, 2007

My Own Private Hell

As garotinhas pareciam satisfeitas com seu achado. Haviam formado uma roda, destampado lancheiras e comido o resto do almoço, trocando olhares e risadinhas. Quando já não tinham o que inquirir, cantavam hinos desafinados.


- Eu suponho que nenhuma de vocês pretenda fazer algo por mim, não é? – perguntou o homem.


Elas apenas riram. Estavam voltando da escola quando o encontraram, pendurado de ponta cabeça, uma das pernas enroscada naquilo que um dia fora o arame de um varal.


- Como você foi parar aí? – quis saber uma ruivinha; seu rosto era tão sardento que mal se via pedaços da pele de tom leitoso.


- É realmente uma longa, longa, longa história – respondeu o homem. – Que eu adoraria contar, mas que, de fato, não vou.


- Talvez ele seja um espião.


- Talvez seja melhor entregá-lo à polícia.


O homem arregalou os olhos. Não imaginou que algum dia enxergaria ameaça real em um grupo de alunas do primário.


- Por que você não consegue se soltar?


- Porque o arame corta minha perna toda a vez em que tento... – num gesto lento, ele ergueu o tronco para agarrar a perna enroscada, mas, então, gemeu de dor e desistiu. – Toda a vez em que tento o que acabei de fazer. C’est la vie.


As garotas deram gargalhadas. Ele teve vontade de apertar-lhe os pescocinhos inocentes até que dessem o último suspiro.


- Sim, riam. É muito engraçado. Talvez eu coloque uma de vocês aqui, quando conseguir descer.


- Ah, não acho que vá conseguir descer.


- Vamos chamar um adulto.


O homem balançou a cabeça.


- Não, não, não. Sem adultos. Não é necessário.


Uma garota morena sorriu.


- Viram? Eu sabia que ele estava fugindo de alguém.


- Como você foi parar aí?


- É uma longa história, como eu já expliquei.


- Sim, mas como?


A verdade era tão absurda que ele não conseguia pensar em uma mentira que servisse. Sentindo o maxilar dolorido e pesado, disse:


- Eu estava no lugar errado, na hora errada.


- Meu irmão falou isso, quando o levaram para a cadeia. Mamãe diz que ele é um caso perdido.


- Me parece que seu irmão e eu seríamos grandes amigos.


As garotas se entreolharam. Houve um minuto de silêncio, e então elas recomeçaram a cantar.


O homem fechou os olhos, contando até dez.


- Será que ele vai morrer? – pôde ouvir uma garotinha cochichar.


O homem abriu os olhos e checou o próprio relógio de pulso. Precisava de mais alguns minutos, e então estaria livre daquela tortura.


- Têm certeza de que não vão me ajudar?


Algumas garotas pararam de cantar. Uma delas franziu o rosto, decidida. Não pareciam inclinadas nem a uma coisa e nem à outra, então o homem apenas suspirou; depois, riu.


- Muito bem. Preciso contar uma coisa.


- Eu sabia! Você é um espião.


- Ah, algo muito pior.


Ele cruzou os braços – o que, de ponta cabeça, dava-lhe um leve aspecto vampiresco, a capa comprida que vestia se arrastando no chão.


- Há um tipo de demônio que não segue regras. Sim, porque até demônios têm suas regras. Uma delas, por exemplo, é a de que não se deve interferir gratuitamente no mundo dos humanos.


Ele tinha a atenção completa das garotinhas.


- Mas... esse demônio, em particular... ele tem idéias próprias a respeito de humanos. Principalmente a respeito de criancinhas. Pensem nele como um Papai Noel inverso.


- O que você quer dizer? – perguntou a ruivinha.


- Quero dizer que nem sempre o que parece um homem em apuros será um homem em apuros. Talvez seja apenas um demônio, experimentando criancinhas.


- Você é um mentiroso.


O homem abriu um sorriso estranho.


- Ainda não terminei de contar a história. Vocês devem saber que demônios, como... gnomos... aparecem e desaparecem quando bem entendem. Quando suas missões terminam.


Ele checou o relógio de pulso mais uma vez.


- Mas o que vocês provavelmente não sabem é que, durante a noite, eles visitam as criancinhas que julgaram dignas de participarem de um churrasco.


- Como assim? – quis saber uma outra menina, que teve a boca imediatamente fechada pelas colegas.


- Vocês são criativas. Podem imaginar.


Uma das garotas se levantou.


- Vou chamar a polícia.


O homem voltou a consultar o relógio.


- Vá – disse. – Por favor, tem a minha permissão. Não haverá ninguém aqui para ser preso, de qualquer maneira. Vá, vá.


Ela correu. Uma menina começou a chorar.


- Não chore, pequenina. Eu vou vê-las quando a noite chegar. Vai ser muito divertido.


- Ele não é um demônio, Cynthia, não chore...


- Eu sou. Eu sou, acreditem. E vou provar em... Esperem. Menos de um minuto. Esperem.


- Ele não é.


- Esperem.


- Você vai para a prisão e não vai mais sair de lá.


- Talvez. Mas, lembrem-se: hoje, nós jantaremos no inferno.


O homem sorriu para elas uma última vez. Ele contou três segundos e, em seguida, desapareceu. As garotas começaram a berrar e a correr.




Peter reapareceu em um beco convenientemente distante. Ele não fazia idéia de quão machucada estava sua perna até dar o primeiro passo e quase gritar de dor. Foi mancando até a esquina.


A rua estava um pouco movimentada. Ele voltou para o beco, tirou o sobretudo, rasgou um pedaço da manga da camiseta e o amarrou em volta da perna. Precisava comprar analgésicos.


Imaginou o que as garotinhas diriam. Provavelmente não conseguiriam descrevê-lo; talvez nem ao menos falassem com a polícia. Durante a noite, contentariam-se em dormir na cama dos pais, tremendo de medo. Sua família estava certa: ele havia nascido para ser um professor.

Saturday, May 05, 2007

Roger

- Eu não sei. Quer dizer, acabo de descobrir que eu tenho um pai, uma mãe e um irmão chamado Roger. E que provavelmente minha melhor amiga e também o meu avô desapareceram numa fenda temporal. Não tá dando pra pensar.


Moira encostou a cabeça no travesseiro. Por alguns instantes, cogitou pensar o que teria acontecido com o país. Seria uma monarquia ainda? Ou o tal Gabriel teria moldado o país à sua imagem e semelhança?


- Afinal, onde você mora agora?

- Harrow.

- Isso é longe pacas do centro.

- Eu sei. E eu acho que eu vou ter que ir até lá. Quer dizer, eu tenho uma esposa. É melhor saber quem ela é.


Nisso a campainha soou estridente, três toques rápidos. Moira tentou levantar, não conseguiu. Bruce correu para abrir a porta.

Do outro lado estava um garoto de vinte anos, cabelo imenso e liso, olhos castanhos, enfiado num sobretudo escuro, jeans e botas sem engraxar. Parecia um pouco Edward Morris quando jovem, se Edward pudesse usar cabelo comprido em 1930.


- Alô, Bruce. Minha irmã tá aí? - ele parecia familiarizado com Glendoning, embora a recíproca não fosse verdadeira.

- Lá dentro...


Roger entrou sem cerimônia, jogando o sobretudo em cima de uma cadeira.


- Moira, cê tá melhor? Papai disse que você passou mal na aula...

- Eu estou melhor, Roger.

- Não vai me assustar, vai? Eu fico quase maluco quando isso te acontece.


Ele parecia tão amoroso, tão genuinamente preocupado, tão feliz de ver que ela estava bem, que Moira cogitou por um décimo de segundo esquecer tudo sobre a mudança temporal e deixar as coisas como estavam. Ela tinha um irmão que se preocupava com ela. Era uma sensação excelente.

Friday, May 04, 2007

CASH LION

Bruce respirou fundo. Olhou para Moira, que não tinha muita certeza do que ele estivera fazendo até então.

- Eu sou casado – Bruce disse, num tom funesto. Em seguida, deixou-se cair no sofá, a lista aberta sobre os joelhos.

- O quê? – Moira perguntou, depois de uma longa pausa.

- Eu sou casado. Há uma mulher vivendo comigo, e nós temos o mesmo sobrenome – Bruce olhou para a parede oposta, e assim permaneceu, como se hipnotizado. – Eu sou casado.

- Com aquela sua namorada?

Ele balançou negativamente a cabeça.

- Com quem?

- Eu não tenho a menor, a mais ínfima idéia. O nome dela...

Bruce interrompeu-se bruscamente. Moira viu seus olhos congelarem sobre as páginas da lista telefônica.

- O que foi? – ela temeu a resposta; não sabia se seria capaz de agüentar outro choque. – Bruce?

Bruce não demonstrava ser capaz de ouvi-la. Havia outro nome próximo ao seu, na lista, e aquele mesmo nome parecia prestes a saltar da página, determinado a açoitá-lo pela eternidade.

- Bruce?

Todas as letrinhas se desalinhavam e dançavam em torno da cabeça de Bruce, como a tirar sarro dele.

- O que foi? Fale comigo.

Ele fechou a lista de supetão, com tanto violência que Moira se arrepiou. Ficou em silêncio.

- Não é nada – Bruce disse, passado algum tempo. Colocou a lista sobre o sofá e se curvou, os cotovelos apoiados nos joelhos. – E agora? O que fazemos?

Senhora Glendoning

- Mamãe, eu estou bem. Palavra! Não precisam me levar a lugar nenhum.


Moira sentia-se estranha falando aquilo. Nunca tivera, pelo menos não que pudesse se lembrar, a oportunidade de chamar Stella de mamãe. Ao mesmo tempo em queria abraçar a mãe, sentia que precisava manter uma atitude de adulta. Afinal, era o esperado.


- Moira, petite fille, você tem certeza que está mesmo bem?

- Tenho, mãe. Qualquer coisa eu telefono para vocês.

- Ah, bem - Arthur tossiu - Qualquer coisa o Roger mora aqui do lado, Stella. Não é que a Moira vai ficar desamparada.

- E você confia na cabeça de vento do seu filho?


Moira olhou para Bruce, tentando segurar o queixo - então Arthur e Stella tinham um outro filho?

Bruce deu de ombros, colocando a lista telefônica em um canto. Ele só voltou a abrir a boca depois que o casal partiu, com milhares de recomendações e pedidos. Moira correu para a estante onde ficavam suas bugigangas e onde ela tinha um álbum de fotografias.

Para sua surpresa, Stella e Arthur estavam la. E um garoto parecido com o jovem Arthur, muito magrelo e desajeitado - provavelmente era o tal Roger. Não havia imagens de Layla ou Jim - eles não existiam para Moira naquela encarnação. E nem Edward Morris, pelas fotos: o avô tinha morrido em algum lugar dos anos 1990.

Enquanto isso, Bruce telefonou para o número que aparecia ao lado de seu nome. A linha chamou e chamou até que uma voz feminina se fez ouvir, em uma gravação de secretária eletrônica:

- Oi, esta é a secretária eletrônica de Jessica e Bruce Glendoning. No momento não estamos em casa. Deixe seu recado após o sinal...


Bruce desligou o telefone depressa, como se alguém tivesse anunciado sua morte. Tudo o que ele mais queria agora era se atirar da janela para ver se não estava tenhdo um pesadelo.

Thursday, May 03, 2007

Corpse

Bruce, encarando aquela aberração temporal, sentia o estômago revirar; tinha medo de acabar vomitando no meio da sala, os pais teoricamente mortos de Moira como platéia.

Quando viu a oportunidade, se esgueirou para um canto.

- Os senhor sabe onde tem uma lista telefônica?

Arthur disse que sim, e apontou um aparador ao lado do sofá. Bruce abriu a lista procurou seu próprio nome. Estremeceu ao descobrir que já não vivia no mesmo endereço.

Ergueu os olhos para Moira, que parecia apavorada sob os cuidados de Stella.

- Pode ser simplesmente estafa. Ela anda trabalhando demais, não é? – Stella virou-se para Bruce, mas não lhe deu tempo de responder. Olhou para Arthur. – Vamos levá-la para o hospital, de qualquer forma.

O marido balançou a cabeça, concordando. Ocorreu a Bruce que, agora, os pais de Moira provavelmente o tinham como irresponsável.

Mas como poderiam julgá-lo?, pensou Bruce. Não havia sido ele a morrer em um acidente de carro.