As garotinhas pareciam satisfeitas com seu achado. Haviam formado uma roda, destampado lancheiras e comido o resto do almoço, trocando olhares e risadinhas. Quando já não tinham o que inquirir, cantavam hinos desafinados.
- Eu suponho que nenhuma de vocês pretenda fazer algo por mim, não é? – perguntou o homem.
Elas apenas riram. Estavam voltando da escola quando o encontraram, pendurado de ponta cabeça, uma das pernas enroscada naquilo que um dia fora o arame de um varal.
- Como você foi parar aí? – quis saber uma ruivinha; seu rosto era tão sardento que mal se via pedaços da pele de tom leitoso.
- É realmente uma longa, longa, longa história – respondeu o homem. – Que eu adoraria contar, mas que, de fato, não vou.
- Talvez ele seja um espião.
- Talvez seja melhor entregá-lo à polícia.
O homem arregalou os olhos. Não imaginou que algum dia enxergaria ameaça real em um grupo de alunas do primário.
- Por que você não consegue se soltar?
- Porque o arame corta minha perna toda a vez em que tento... – num gesto lento, ele ergueu o tronco para agarrar a perna enroscada, mas, então, gemeu de dor e desistiu. – Toda a vez em que tento o que acabei de fazer. C’est la vie.
As garotas deram gargalhadas. Ele teve vontade de apertar-lhe os pescocinhos inocentes até que dessem o último suspiro.
- Sim, riam. É muito engraçado. Talvez eu coloque uma de vocês aqui, quando conseguir descer.
- Ah, não acho que vá conseguir descer.
- Vamos chamar um adulto.
O homem balançou a cabeça.
- Não, não, não. Sem adultos. Não é necessário.
Uma garota morena sorriu.
- Viram? Eu sabia que ele estava fugindo de alguém.
- Como você foi parar aí?
- É uma longa história, como eu já expliquei.
- Sim, mas como?
A verdade era tão absurda que ele não conseguia pensar em uma mentira que servisse. Sentindo o maxilar dolorido e pesado, disse:
- Eu estava no lugar errado, na hora errada.
- Meu irmão falou isso, quando o levaram para a cadeia. Mamãe diz que ele é um caso perdido.
- Me parece que seu irmão e eu seríamos grandes amigos.
As garotas se entreolharam. Houve um minuto de silêncio, e então elas recomeçaram a cantar.
O homem fechou os olhos, contando até dez.
- Será que ele vai morrer? – pôde ouvir uma garotinha cochichar.
O homem abriu os olhos e checou o próprio relógio de pulso. Precisava de mais alguns minutos, e então estaria livre daquela tortura.
- Têm certeza de que não vão me ajudar?
Algumas garotas pararam de cantar. Uma delas franziu o rosto, decidida. Não pareciam inclinadas nem a uma coisa e nem à outra, então o homem apenas suspirou; depois, riu.
- Muito bem. Preciso contar uma coisa.
- Eu sabia! Você é um espião.
- Ah, algo muito pior.
Ele cruzou os braços – o que, de ponta cabeça, dava-lhe um leve aspecto vampiresco, a capa comprida que vestia se arrastando no chão.
- Há um tipo de demônio que não segue regras. Sim, porque até demônios têm suas regras. Uma delas, por exemplo, é a de que não se deve interferir gratuitamente no mundo dos humanos.
Ele tinha a atenção completa das garotinhas.
- Mas... esse demônio, em particular... ele tem idéias próprias a respeito de humanos. Principalmente a respeito de criancinhas. Pensem nele como um Papai Noel inverso.
- O que você quer dizer? – perguntou a ruivinha.
- Quero dizer que nem sempre o que parece um homem em apuros será um homem em apuros. Talvez seja apenas um demônio, experimentando criancinhas.
- Você é um mentiroso.
O homem abriu um sorriso estranho.
- Ainda não terminei de contar a história. Vocês devem saber que demônios, como... gnomos... aparecem e desaparecem quando bem entendem. Quando suas missões terminam.
Ele checou o relógio de pulso mais uma vez.
- Mas o que vocês provavelmente não sabem é que, durante a noite, eles visitam as criancinhas que julgaram dignas de participarem de um churrasco.
- Como assim? – quis saber uma outra menina, que teve a boca imediatamente fechada pelas colegas.
- Vocês são criativas. Podem imaginar.
Uma das garotas se levantou.
- Vou chamar a polícia.
O homem voltou a consultar o relógio.
- Vá – disse. – Por favor, tem a minha permissão. Não haverá ninguém aqui para ser preso, de qualquer maneira. Vá, vá.
Ela correu. Uma menina começou a chorar.
- Não chore, pequenina. Eu vou vê-las quando a noite chegar. Vai ser muito divertido.
- Ele não é um demônio, Cynthia, não chore...
- Eu sou. Eu sou, acreditem. E vou provar em... Esperem. Menos de um minuto. Esperem.
- Ele não é.
- Esperem.
- Você vai para a prisão e não vai mais sair de lá.
- Talvez. Mas, lembrem-se: hoje, nós jantaremos no inferno.
O homem sorriu para elas uma última vez. Ele contou três segundos e, em seguida, desapareceu. As garotas começaram a berrar e a correr.
Peter reapareceu em um beco convenientemente distante. Ele não fazia idéia de quão machucada estava sua perna até dar o primeiro passo e quase gritar de dor. Foi mancando até a esquina.
A rua estava um pouco movimentada. Ele voltou para o beco, tirou o sobretudo, rasgou um pedaço da manga da camiseta e o amarrou em volta da perna. Precisava comprar analgésicos.
Imaginou o que as garotinhas diriam. Provavelmente não conseguiriam descrevê-lo; talvez nem ao menos falassem com a polícia. Durante a noite, contentariam-se em dormir na cama dos pais, tremendo de medo. Sua família estava certa: ele havia nascido para ser um professor.