Wednesday, March 19, 2008

What Our Future May Bring

Eles logo chegaram à estação de metrô abandonada. Stella começava a dar sinais de desconfiança – e Nicholas, ainda mais bêbado do que sóbrio, parecia achar tudo engraçado. Sua recém-adquirida mágoa em relação a Peter se transformara em uma inconveniente camaradagem:

- Onde foi que você arranjou essa capa bonita? Pensei que couro fosse proibido – e soluçou, sorrindo.

- Não, é sintético – Peter respondeu.

- Ora, não é não – Nicholas tomou a ponta do sobretudo rasgado. – É couro.

- É só uma capa velha.

Nicholas franziu o cenho.

- Bem, mas isso pode lhe trazer muitos problemas.

Bruce, por outro lado, acompanhava a inevitável retomada de consciência do pai com ares de infelicidade. Pior do que lidar com um Nicholas bêbado seria lidar com um Nicholas funcionando em sua capacidade total.

Moira aproximou-se de Peter. Olhou para trás, garantindo que sua mãe estivesse longe o bastante para não escutá-la, e perguntou:

- Peter, quem é o seu pai?

Peter não se surpreendeu com a pergunta. Era óbvio, para Moira, que ele vinha esperando por aquele momento. Mas não pôde deixar de sentir-se inquieto.

- Você provavelmente entende por que eu não posso responder.

Moira entendia, mas insistiu:

- Por que não?

- Porque se eu lhe disser que você está destinada a se casar com pessoa A, talvez você não veja pessoa A com bons olhos. Ainda. Talvez – na verdade, muito provável – a revelação atrapalhe a relação que vocês iriam ter e seu eventual casamento. Talvez você acabe olhando para pessoas B e C, e meu destino seria incerto. Chame de egoísmo, mas não sei lidar com isso de outra forma.

- Mas eu jamais... – Moira começou.

- Talvez. O futuro é incerto. Eu já mudei muitas coisas no meu futuro por besteiras menores.

Moira sentiu-se dominada pela súbita vontade de saber de tudo: há quanto tempo Peter viajava? O que ele fazia em outras épocas? Como era o futuro? Tinha certeza de que ele jamais lhe responderia, mas a vontade de permanecer ao seu lado, na esperança de que deixasse algo escapar, era irresistível.

Peter abriu um vagão com a ajuda do próprio relógio de pulso. Os outros perceberam que era um trem moderno, um trem que jamais teria sido abandonado em um lugar decadente como aquele. Stella puxou a manga de Moira com discrição.

- Mas o que é isso?

- Não se preocupe, mamãe. Logo vai estar em casa – era o melhor que Moira poderia dizer.

Peter, tendo arrumado o painel de controle, colocou a cabeça para fora do vagão:

- Bem, vocês vão ficar aí?

Nicholas foi o primeiro a entrar, assombrado. Virou-se para Bruce:

- Você tem amigos estranhos.

- Eu sei.

Deu um tapinha no ombro do filho, e aquele contato enrijeceu o corpo de Bruce. Ele caminhou até onde Peter estava tão logo pôde.

- Como você construiu um trem como o do Wilcox? – perguntou.

- Não construí. É o mesmo. Mas as melhorias não foram feitas por mim, de qualquer jeito.

- Por quem?

- Muitas pessoas, ao longo de muitos anos. Meus pais foram algumas delas.

- E você é parente do professor?

- Não. Eu nunca o conheci.

Bruce não ousou perguntar mais nada. Começava a aceitar o fato de que Peter era um viajante do tempo, e de que estava ali para salvá-los. Mas o que exatamente aquilo significava? Olhou para Nicholas, sentado em um dos bancos, seus primeiros indícios de depressão começando a se manifestar – a cabeça baixa, os ombros largados. Depois para Stella, viva, sem saber que era a primeira vez em muitos anos que reencontrava sua filha. Desistiu de pensar a respeito.

Tuesday, November 13, 2007

Road to Nowhere

- Existe um lugar onde a gente pode se esconder - Peter disse.

- Minha esposa...

- Não se preocupe com ela ainda. Isso aqui é o seu pesadelo, Bruce - o garoto sorriu - E ela, de qualquer forma, está mais protegida do que você pensa.


Deixando Bruce com suas perguntas, o garoto voltou-se para Moira.


- O meu trem pode fazer viagens terrestres, também. Ninguém vai desconfiar, mas temos que sair daqui agora. Todo mundo, Nicholas inclusive.

- Minha mãe nunca vai entender....

- Mamãe, ela vai entender perfeitamente. Furtos de veículos são comuns nesse nosso tempo imaginário. Até mesmo trens. Se está pronta...

- E os policiais? - Bruce gemeu de raiva.


Peter deu de ombros e voltou-se para Moira.


- Eu pensei que era o tempo que tinha deixado ele assim - e, para Bruce - Você prefere ser alvo fixo ou alvo móvel? Tem uma chance da gente ir preso, se formos até a estação. E a certeza de que vamos ser presos, se ficarmos aqui.


E, com um sorriso irônico.


- Quer dizer, vocês vão ficar presos. Eu vou acabar sumindo no ar, porque meu tempo aqui está contado. Como é? Vamos?

Wednesday, October 10, 2007

Defeito de fabricação

Era Bruce. Ele entrou discretamente, ignorando as muitas perguntas de Moira. Tratou de calar-lhe a boca com uma das mãos tão logo a porta foi fechada.

- Fui parado pela polícia – ele disse; estava mais calmo do que se presumiria.

Moira aquietou-se imediatamente. Perplexa, ela afastou a mão de Bruce.

- Parado? – perguntou. – Como assim? Por quê?

- Não sei. Talvez eu pareça mesmo suspeito. Quando deixei o pub comecei a andar e a andar e a andar. Acabei parando em um parque onde eu costumava... quero dizer, foi inconsciente. É engraçado... – ele começou a rir, mas depois abaixou a cabeça, envergonhado. – Não sei o que houve. Quando me dei conta, uma sirene quase me ensurdeceu e dois homens desceram de um carro que eu nem a menos tinha percebido. Talvez estivessem me seguindo desde sempre.

- E então?

- E então quiseram meus documentos.

Moira mordeu o lábio inferior.

- Isso não é bom.

- Eu disse que estava sem ele. Os dois começaram a rir: “Mas será que alguém realmente anda sem documentos hoje em dia?” Idiotas.

- E então?

- Pegaram a minha carteira. Os MEUS documentos, não os do outro Bruce. Eu soube no mesmo instante que passaria longos anos na prisão.

- Como conseguiu escapar?

Bruce balançou a cabeça.

- Só estavam rindo de mim. E então viram os documentos e entenderam que havia alguma coisa errada. Balançaram a minha identidade na minha cara e perguntaram o que era aquilo. Pensei em pelotões de fuzilamento. Estava visualizando câmaras de tortura – e, por algum motivo, John Hurt.

- Bruce, como saiu de lá?

Bruce fez uma pausa. Sentia-se angustiado como uma criancinha que subitamente descobre que Papai Noel não existe.

- Moira... eu desapareci – confessou.

- Você o quê?

- Eu desapareci. Por um instante, um ínfimo instante. E então reapareci em um lugar completamente diferente.

Ele segurou Moira pelos ombros e com total delicadeza a empurrou até a cozinha. Reduziu o tom de voz a um murmúrio:

- Lembra-se do que Wilcox dizia sobre pequenos problemas que estava enfrentando com as viagens temporais? Sempre quando ele nos encontrava repentinamente? Lembra-se? Eu acho que foi a mesma coisa. Talvez seja um defeito da máquina.

Moira precisou de alguns instantes para pensar. Ela lançou um olhar vago para a pia - a torneira pingava.

- E então veio correndo para cá?

- Vim correndo para cá. Mas não importa. Moira, bem ou mal, eles estão com a minha carteira. Minha identidade pode não fazer muito sentido, mas eles têm meu nome. Eu... eu tenho uma esposa.

- Eu sei.

- Fica ainda pior. Já imaginou o que pode acontecer se isso for levado a... autoridades mais competentes?

- Como assim?

- O misterioso homem que desaparece? Uma carteira de identidade que não está de acordo com a documentação deste presente? E se Gabriel souber de mim? E se a história for parar em jornais?

Uma perspectiva tão absurda não havia ocorrido a Moira. Ela imaginou o que faria Gabriel tendo o conhecimento de outros como ele. Pessoas que poderiam prejudicar sua carreira promissora no ramo dos ditadores.

- Não vão publicar nada no jornal. Eles controlam toda a mídia. Não deixariam uma informação do tipo escapar tão levianamente.

- Eu preciso voltar para Londres. Jessica. Talvez a procurem.

- Mas e o seu pai?

Só naquele momento Bruce se atreveu a desviar os olhos de Moira. Pouco a pouco ele se deu conta de que estava na casa em que havia passado sua infância.

- Minha mãe está aqui?

- Não. A casa estava vazia. Não sabemos para onde ela pode ter ido.

- Vim correndo para cá por instinto. É realmente engraçado que...

Não completou a frase. Notou que alguém se aproximava – era Peter. Bruce o encarou por algum tempo, confuso, e depois se voltou para Moira:

- Todos vão precisar sair daqui.

Tuesday, October 02, 2007

Duophenia, parte II - Dos desígnios do futuro

- Ah, chega de conversa - Moira resmungou, agarrando o braço de Nicholas - Você vem conosco e fim de papo!


Nicholas não ofereceu resistência, pelo contrário - deixou-se arrastar pub afora como o mais doce dos carneiros de sacrifício. Stella e Peter ajudavam como podiam, mas era Moira quem fazia o maior esforço. Nisso tinha um pouco de Arthur Harris em si - a força quase sobrenatural que vinha quando se enfurecia.

O quarteto seguiu para a casa de Nicholas, na Red Lion Street. Em nenhum momento se considerou procurar Bruce pelas ruas. Era inútil - ele tinha fugido e a cidade era um quebra-cabeças; no entanto, ele sabia onde o pai morava. Em algum momento ele retornaria.

***

Stella se ocupou de Nicholas, enquanto Moira ficou com Peter em uma sala. O lugar estava lotado de mapas e livros - Bruce tinha puxado ao pai naquele aspecto.


- Então você veio do futuro - Moira começou a conversa, depois de se certificar que Stella não estava lhe ouvindo.

- Eu guardei todos os seus cadernos.

- O futuro é pior do que o presente?

- Prefiro não te dizer - Peter deu de ombros - A ignorância é uma bênção.

- Está bem. Só me diga como você reformou a máquina.

- Eu não reformei. Foi meu pai, quando ele começou a ficar maluco como esse tal Nicholas. Dizia que era preciso reencontrar um tal de Wilcox.

- Alphonsine Wilcox. Foi o homem que inventou a máquina.


Peter sorriu. Era bom finalmente ter descoberto a resposta para o enigma.


- Onde esse tal Wilcox se perdeu?

- Em algum lugar de um outro 2006. Gabriel Stuart o matou para usar a máquina.


Alguém bateu à porta. Moira e Peter se entreolharam.


- Se for a polícia, por favor fuja e fique viva - Peter sorriu, como se a cena fosse comum - Eu pretendo continuar existindo.

Wednesday, September 26, 2007

Do velho Nicholas

Tão logo reconheceu Nicholas, Bruce deu as costas ao grupo, nervoso demais. Considerou sair correndo do pub – só por alguns segundos – mas teria sido, ele logo pensou, uma imensa covardia abandonar Moira e a mãe à mercê de um bêbado e de um rapaz que pouco lhe inspirava confiança.

- Bruce? – a voz de Stella prenunciava o que ele não desejava ver.

Bruce se virou devagar. Lá estava seu pai, muito mais velho e deteriorado do que se lembrava. Quando era mais jovem, na época de sua morte, Nicholas já parecia velho em muitos aspectos – a bebida corroera quase toda a jovialidade que possuía. Mas nada preparara Bruce para o homem que de fato seu pai teria se tornado, o profundo olhar de desesperança, as marcas e cicatrizes de incontáveis brigas de bar. Nicholas, um homem que sempre fora alto, agora parecia frágil, curvado e letárgico, um ratinho no meio de homens.

- Pai – Bruce murmurou, sentindo os olhos queimarem.

Nicholas piscou algumas vezes, até reconhecê-lo.

- Ah, aí está você – ele disse, não com satisfação. Virou-se para Peter. – Você é o moleque chato. Amigo seu, Bruce?

Mas Bruce não conseguiria responder. Peter tomou a liberdade:

- Pode-se dizer que sim.

- É melhor voltarmos para casa, pai – agora Bruce parecia distante, mecânico como um robô.

- Voltar? Mas acabei de chegar.

- Não deveria estar aqui.

- Mas essa é muito boa. Venho aqui desde que me entendo por gente.

Ele colocou a mão no ombro de Moira, o bafo de álcool escapando através dos dentes amarelados.

- Venho aqui desde que conheço a Stella. Não é, Stella – sacudiu levemente Moira. – Você ainda é uma moça bonita.

Bruce somente balançou a cabeça.

- OK. Como quiser – e deixou o grupo sozinho, ganhando as ruas.

Tempo Futuro

- Onde, Peter? Temos que tirar o Nicholas daqui. À força, se necessário - Moira disse, encarando o rapaz com doçura.

- Nos fundos. Não é difícil. Ele soa como o filho dele.



Bruce fez uma careta de desgosto, enquanto Moira bateu no braço da mãe.



- Revéille-toi, madame Stella... Não estamos aqui para visita sociais.

- Oh, está bem. Quem é o garoto?

- Um amigo que veio de longe - Moira desconversou - O Nicholas?


Ele estava no fundo do bar, observando um copo vazio como se dali fosse sair a nova Teoria da Relatividade. Mal percebeu quando Stella, Moira e Peter se sentaram ao lado dele. Bruce ficou de pé, longe o suficiente para não ser notado.

Preferia ter morrido no caminho a encarar aquela cena.


- Nicholas, vamos para casa - Stella disse, com voz neutra.


Nicholas ergueu o rosto e um raio de luz iluminou seus olhos.


- Rebecca! Você veio me resgatar!

- Vamos embora, sim? Está ficando tarde.

- Mas eu mal cheguei. Deixe-me ficar mais um pouco - e, com um suspiro, ele observou Moira e Peter - Vocês podiam convencê-la. Você podia, Bruce.


Peter sorriu, abaixando a cabeça.


- Eu não me chamo Bruce. Vem, antes que nos expulsem. O tempo é curto.

- O tempo destrói tudo - Nicholas disse, mais para si mesmo do que para seus interlocutores.

- Eu já ouvi essa frase antes - Moira respondeu, levantando o pai de Bruce pelos ombros.

Em família

Bruce não compreendeu durante algum tempo, e estava a meio de caminho de perguntar outra coisa, em tom irritado, quando parou bruscamente, olhando para Peter como se visse um fantasma.

- O que ele disse? – perguntou.

- O quê? – Peter olhou para ele, divertido.

- Você a chamou de...

Ele não prosseguiu. Deu um passo para trás e balançou a cabeça.

- Esqueça. Não sei se quero saber.

Bruce segurou Moira pelo pulso e os dois entraram no pub. Peter os seguiu em silêncio, quase tão alto quanto Bruce e duas vezes mais estranho.

Stella, parada ao balcão, conversava animadamente com alguns homens, nenhum deles Nicholas. Bruce deu um suspiro.

- Bem, talvez ele não esteja aqui. Talvez tenha desmaiado no meio do caminho, ou em algum beco.

- Ele está aqui – Peter informou.

Bruce se virou para ele:

- Você e eu realmente precisamos ter uma conversa.

- Vamos, deixe-o em paz – Moira o interrompeu. – Só está querendo ajudar.

Ela e Peter se entreolharam e sorriram, como portadores de um segredo bastante engraçado. Bruce não notou, ou teria ficado com uma disposição ainda mais azeda.

Duophenia


Why was I born today?
Life is useless like Ecclesiastes say
I never had a chance
But opportunity's now in my hands (...)
My life's a mess
I wait for you to pass
I stand here at the bar, I hold an empty glass

(Pete Townshend, "Empty Glass")



- Falta muito para chegar? - Moira perguntou, embrulhada no casaco.

- Mais um pouco - Bruce respondeu em voz alta e depois abaixou-se um pouco, para falar ao pé do ouvido de Moira - Lembre-se que eu estou navegando por instrumentos aqui. Você cresceu aqui, você me diz onde está esse bar.

- As ruas mudaram um pouquinho! Ah, vire ali. Red Lion Street.

A fachada e a barulheira do The Trooper surgiram como a luz de uma lareira, atraindo a atenção de Stella, que suspirou como se a visão lhe fosse tristemente comum. Moira olhou o prédio de alto a baixo - como o pub tinha decaído naquela vida paralela! Parecia mais uma fábrica abandonada, um prédio sobrevivente de uma blitz do que um bar e restaurante funcional.

- E pronto. Vejamos se o Nicholas está aí dentro - Stella disse, mais para si mesma do que para seus acompanhantes.

Antes que Bruce pudesse dizer algo, Stella marchara para dentro do pub, uma Rebecca sem medo dos monstros na caverna. Moira tentou impedi-la, mas a mãe simplesmente desapareceu como que tragada por um buraco.

- Sua mãe é teimosa, hein? - Bruce comentou com Moira.

- É mal de família - um rapaz na frente do pub comentou por alto.

Moira voltou-se para o garoto, que lhe cumprimentou com um gesto de cabeça.

- Peter - Moira sorriu.

- Você disse para eu vir te buscar, mãe.

Thursday, August 02, 2007

A estranha cria do tempo

Peter não era o tipo de pessoa que inspirava simpatia. Ele inspecionou Kirk com frieza, do pé direito ao topo da cabeça grisalha. Deu um sorriso repelente.


- Bonsoir.

- Amigo novo do Glen? – Kirk quis saber. –É um pouco jovem para...


Kirk não continuou. Peter parecia ter decifrado o que ele pretendia dizer e somente aumentou o sorriso. Sóbrio demais para ser um beberrão.


- Bem, meu nome é Kirk. Prazer.

- Peter. Você parece ser um sujeito decente, embora use costeletas assimétricas.


Kirk olhou para Nicholas, que somente balançou a cabeça; ele já havia desistido de tentar compreender o rapaz.


- Se não se importam – Nicholas começou. – A noite avança e estou morrendo de frio. Preciso me esquentar.


Peter não saiu do lugar em que estava.


- Não se esqueça de ligar para a sua esposa – disse.


Desconcertado, Nicholas, um pé já dentro do pub, voltou-se para encará-lo. Resmungou alguma coisa. Kirk deu-lhe um tapinha leve nas costas e o seguiu.


Peter permaneceu do lado de fora, olhando para o céu escuro.

Um homem com pé torto

Estava frio - as janelas do The Trooper estavam embaçadas. Era tanta gente do lado de dentro que caminhar se tornara um desafio.

Kirk saíra arrastando o pé direito, arruinado há tantos anos, pronto para encarar o ar gélido das noites de Norwich. Mais uma noite que descia. E lá vinha Nicholas, descendo a rua, os passos incertos e as mãos dentro dos bolsos do sobretudo surrado.

Todas as noites eram assim. Nicholas não falava coisa com coisa nem mesmo sóbrio; quando bêbado, virava um gênio incompreendido e um chorão de marca maior. Naquela noite, ele vinha lado a lado com um garoto de uns dezessete anos, cabelos castanhos, casacão de lã encardido.

Eram parecidos, Kirk pensou. Nicholas sempre falava do filho, Bruce, que morava em Londres. Mas o garoto que lhe acompanhava parecia bem mais jovem. Quem pode dizer se ese aí também não é dele? Os homens sempre aparecem com alguma novidade, Kirk riu para si mesmo.


- Boa noite, meu velho - Nicholas cumprimentou com um gesto de cabeça.

- Boa noite, professor - Kirk não perdia a oportunidade de mencionar o apelido de Nicholas - O jovenzinho aí, quem é?

- Ele? - Nicholas olhou para o lado, como se feliz de ver que não estava tendo alucinações - Ele disse que se chamava Peter.

Wednesday, August 01, 2007

Monstros

Quando desceram do trem, Bruce puxou discretamente o braço de Moira.


- Um maluco apareceu na minha sala de aula. Ele disse que se chamava Peter.


Moira não respondeu. Ela estalou a língua e pareceu ausente durante um ou dois instantes, como se procurando assimilar o que acontecia.


- E então?

- Sim – foi o que Moira disse.

- Sim? Quem é Peter? Porque eu sei, e Deus sabe, que existem muitos homens chamados Peter por aí, mas algo me diz que o Meu Peter e o Seu Peter são o mesmo Peter.

- O que estão fazendo? – Stella se aproximou. – A plataforma está ficando muito cheia.


Bruce notou o olhar quase faminto que alguns homens recostados na parede dirigiam ao trio. Ele não sabia o quanto as pessoas eram miseráveis naquele futuro, mas tinha uma vaga idéia. Empurrou levemente Moira para junto da mãe e caminhou ao lado das duas, afastando-se daquela área.


Bruce voltou-se para Stella assim que deixaram a estação:


- Onde fica o The Trooper?

- Mas você não sabe? – Stella perguntou, risonha.


A resposta pareceu entalar na garganta de Bruce. Ele grunhiu e deu de ombros.


- Bruce não foi criado em Norwich – Moira se apressou em dizer.


E então ela arregalou os olhos, ciente da própria gafe.


- Eu fui, é claro que fui, Moira – Bruce riu, levemente desesperado. – Mas eu saí já há muito tempo. Londres consumiu toda a parte do cérebro que eu dedico ao mapeamento mental de cidades.


Poderia existir uma desculpa pior? Um Bruce de dez anos ergueu a cabeça quando a porta foi aberta. O professor, perplexo, olhou para o garotinho – uniforme em ordem, ausência em classe não percebida: “Como conseguiu a chave desta sala?”; “Eu encontrei debaixo do meu travesseiro”.


- Sempre posso piorar as coisas.

- O que disse?

- Nada. Não seria melhor pegarmos um táxi ou algo assim?


Stella gargalhou.


- Você é engraçado, Bruce. Não confiaria a integridade física de nem mesmo um saco de açúcar a um táxi que circule por aqui.


Caminhar não seria um problema, Bruce decidiu. Ele precisaria de tempo para digerir o inevitável encontro com um pai que estava morto há mais de vinte anos.


- Está se sentindo bem? – Moira murmurou.

- Eu preferiria ter descoberto que sou casado com a Golda Meir do que precisar rever o meu pai. Apenas uma forma alegórica de demonstrar como eu me sinto no momento.