Na primeira noite que passou em seu apartamento, Bruce Glendoning sonhou que era devorado pela secretária-eletrônica. Ao amanhecer, ainda de pijamas e meias, começou a organizar a biblioteca, tarefa que, em cinco anos, jamais foi capaz de terminar. Quando sua mãe e o segundo marido, Rob, enfim mudaram-se para a casa que o próprio Rob vinha construindo, Bruce indagou se, por acaso, um extremo acaso, não haveria algum livro sobrando. Honoria mandou uma caixa de romances kitsch. Bruce conseguiu que ela atendesse o telefone três dias depois:
- Mãe, a senhora tem certeza de que mandou a caixa certa?
- Eu mesma organizei. E cuidado com o meu “Paixões Ao Vento de Abril”. É um exemplar de colecionador.
Bruce escondeu a caixa nas profundezas de um dos armários. Na noite seguinte, sonhou que o homem descamisado na capa de “Paixões Ao Vento de Abril” escapava do confinamento para se vingar. Os dois se enfrentavam em um duelo e Bruce recebia um tiro fatal no peito. O homem descamisado ria, zombava, tomava a mulher ruiva nos braços. Bruce só podia implorar para que Deus acabasse com tudo de uma vez.
Contou o sonho a Rose, que ficou surpresa com a existência da caixa.
- Ela ainda está aqui? – Rose perguntou, em um tom carregado de misticismo.
- Fisicamente, ah, está. Mas não a mostrei a ninguém. E nem mostrarei. Jamais – resoluto, Bruce engoliu um gole do chá; desprezava café, que parecia ser a bateria de Rose.
Ela sorriu e deu de ombros.
- Minha mãe também tinha uma coleção. Nunca soube o que foi feito daqueles livros. O que me lembra: Bruce, quando vai terminar de arrumar seu apartamento?
- Jamais.
Bruce e Rose viviam uma história que poderia ser explicada em uma nota de rodapé. Conheciam-se há um ano e ainda não tinham planos de morar juntos. Era um acidente inexplicável, como o Prof. Wilcox chamava. Rose, estilista em início de carreira, a cabeça habitada por tesouras e saias balonê. E Bruce, o estranho Bruce, que colecionava mapas e rejeitava tênis e calças jeans.
Tinham poucos dias da semana para se encontrar; geralmente o faziam em uma casa de chás perto de onde Rose morava. A atendente chamava Bruce de “Professor”. Bruce sabia que a atendente não o aprovava, do alto de sua autoridade.
- Você começa a questionar sua honra quando balconistas desconhecidos se dão o direito de lhe arranjar apelidos.
Rose deu de ombros.
- É humanamente inaceitável, você entende – Bruce continuou. - Entende?
- Eles só estão brincando. Talvez se você parecesse mais sociável...
- Mais sociável?
- Uma pessoa normal, eu quero dizer.
Rose recebeu os biscoitinhos que a garçonete trouxe. Comeu-os despreocupadamente, mas Bruce estava atento, o peso de seu olhar quase achatando-a na cadeira. Incapaz de ignorá-lo, Rose fez um gesto afetado com a mão.
- A culpa é do tal de Schopenhauer que você gosta de ler. É a minha opinião.
Bruce franziu o cenho, mortalmente ofendido. Naquela noite, sonhou que Schopenhauer escapava da estante e vinha matá-lo.
Tuesday, May 30, 2006
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